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Passo a passo, uma cidade fecha-se aos carros e aposta noutro “combustível”

Pedro C. Esteves
Sociedade \ domingo, outubro 23, 2022
© Direitos reservados
Há quem veja com bons olhos e quem diga que será uma “sentença de morte ao comércio”: teme-se que, sem lojas-âncora, a medida seja inconsequente.

“Nós temos muito turistas. Às vezes saem daqui e não têm bagagem para levar tudo”. Os pratos tilintam nas mãos de Francisco Correia e há um entra e sai constante nesta loja de portadas vermelho marrom. A louça portuguesa que coloca num saco está vendida. Lá fora, olhares curiosos percorrem a montra como se lessem um livro. Em bicos de pés, como que para ver melhor o que se guarda por detrás do vidro, os mais novos apontam para os carrinhos coloridos estacionados em jeito de parada. A Loja das Novidades fica em plena Rua da Rainha, por debaixo de uma varanda de ferro forjado. Ultimamente, esta artéria de ligação privilegiada entre centro histórico e Largo do Toural tem sido notícia: não pelo futuro da Casa dos Lobo Machado ou pelo funcionamento do órgão ibérico da Igreja da Misericórdia; é que é possível que por ali não passem carros daqui por um ano – e isso está a gerar discórdia.

O anúncio: Guimarães vai fechar o centro histórico aos automóveis até ao final do próximo ano. Os carros não vão poder circular na rua Rainha D. Maria II, Santo António, na parte superior do Largo do Toural e Alameda de São Dâmaso. Para tirar o som dos motores e das buzinas está em curso o projeto para nivelar a cota das ruas pela cota da estrada. Isto vai permitir criar espaços pedonais e de lazer. Por exemplo, a ideia para o Largo da Misericórdia passa por retirar as correntes e os pinúsculos cilíndricos. “A ideia é alterar fisicamente esse largo, que também vai deixar de ter carros”, ilustra ao Jornal de Guimarães Domingos Bragança. “Antes da pandemia disse-o diversas vezes: mal o Parque de Camões estivesse concluído – estamos a falar em 400 lugares mesmo no centro da cidade –, iríamos pedonalizar por completo o centro histórico. Em que acrescentávamos o interior da muralha e ruas adjacentes da centralidade de Guimarães”, acrescenta o autarca.

O declarar de intenções levou a que a Associação de Comércio Tradicional de Guimarães (ACTG) reagisse: a materializar-se, a decisão seria uma "sentença de morte ao comércio". O comunicado dá ainda conta de um "inquérito" realizado "porta a porta" no centro histórico em que "99%" dos comerciantes se mostravam contra a proibição de trânsito automóvel. "A referida decisão vem sido promovida, exibida, com argumentação populista, vaga e sem qualquer factualidade", argumenta a ACTG.

Francisco Correia não vê as coisas assim. “Eu sou apologista de se fechar o trânsito, porque se as pessoas não tiverem preocupadas com os carros, andam mais livremente com os filhos, com carrinhos”, justifica. Está à frente do estabelecimento há cerca de sete anos, mas a casa atravessa gerações – já é “muito mais antiga do que o volume de turismo recente”, pontua. Sustenta que os carros que por ali passam fazem “muita diferença” e alerta para fatores que podem ser corrigidos com este “devolver da cidade às pessoas”, expressão usada pelo presidente da Câmara Municipal de Guimarães aquando do anúncio da decisão. “Não raras vezes” já teve de ajudar quem se desloca de cadeiras de rodas ou carrinhos de bebé a subir passeios. “Basta ver lá fora, basta ver que outras cidades já fecharam ruas aos carros. Porquê? Por alguma coisa será”, atira.

Dois casos: Viana do Castelo e Porto

Mas nem é imperativo galgar fronteiras para se ter essa perceção. “Não precisámos de ir para o estrangeiro para encontrar bons exemplos”, diz Rui Ramos, professor da Escola de Engenharia da Universidade do Minho e investigador do Centro de Território, Ambiente e Construção (CTAC). “Se tivéssemos uma bola de cristal e pudéssemos saber o que iria acontecer daqui por cinco anos com esta transformação, poderíamos tomar outras decisões, mas tomámos com base no conhecimento e experiências noutras cidades”.

O investigador aponta dois exemplos: Viana do Castelo e Porto. Na ‘Invicta’, a rua de Santa Catarina é uma das artérias com maior tráfego pedonal a nível nacional – nem sempre foi assim. “Era uma rua de trânsito automóvel e passeios, agora é uma rua de circulação pedonal e andam lá muitas mais pessoas do que passavam anteriormente, quando andavam lá carros. O transformar uma rua pedonal, a sua vivência, até espoleta uma relação com o comércio local muito mais forte e ativa”, indica ao nosso jornal. Na capital do Alto Minho, aquando de uma remodelação do espaço urbano que impedia circulação de carros num conjunto de ruas, “os comerciantes reclamaram”. “Depois criaram-se condições para que as pessoas pudessem deslocar-se e neste momento [os lojistas] reconhecem que o espaço público ficou mais agradável e que promove a circulação a pé; entram mais nos estabelecimentos comerciais”.

“Em termos abstratos, para qualquer cidade, criar condições para que as pessoas circulem mais facilmente a pé é ir recuperar a essência do conceito de cidade”, Rui Ramos, investigador

Ora, o que preocupa a ACTG e outros comerciantes ouvidos pelo Jornal de Guimarães são essas “condições”, quase que como pré-requisitos para que a ideia avance. "Uma das questões centrais que deve ser garantida é o estacionamento disponível, e não se pode considerar que o parque de estacionamento de Camões, com 439 lugares (onde uma grande parte deles está "entregue" a moradores) será a resposta necessária, bastando analisar o seu nível de ocupação nos dias de hoje", refere a associação que junta 200 comerciantes.

Só nos lugares onde vão deixar de passar carros e nas imediações do centro da cidade há mais de 600 lugares – se contarmos com parques de estacionamento que não estão sob alçada da Vitrus, como o parque privado de São Francisco ou o gratuito nas Hortas. O Jornal de Guimarães perguntou à empresa municipal a taxa de ocupação dos cinco parques que, juntos, têm 800 lugares, mas não obteve resposta até ao fecho desta edição.

E depois, como relata Susana Freitas, comerciante na rua de Santo António, faltam as chamadas lojas-âncora. Por ali, notou-se “muito” o fecho da Zara. “Sentiu-se mesmo muito impacto do fecho. Dava movimento. É tão triste olhar lá para fora e nem pessoas andam. Antes da Zara, tiraram os correios, outra coisa que fez cair a pique o movimento”, lamenta. Ainda não há uso definido para o edifício adaptado a estação de correios na década de 40. Ao que apurámos junto da imobiliária que detém o edificado, ainda “nada está decidido”.

A Santo António foi ficando sem “trunfos”. Um deles caiu há pouco tempo. No início do ano, soube-se que havia interesse da Câmara de Guimarães em fixar no centro comercial daquela rua a Loja do Cidadão. Domingos Bragança evocava a “perda de dinamismo” que por lá paira desde que os correios deixaram de operar ali: seria “a cereja em cima do bolo”, dizia. Mas não aconteceu. O negócio com os proprietários caiu – num procedimento amplamente criticado pela oposição na reunião de câmara de 15 de setembro – e a loja de serviços ficará no Largo Cónego José Maria Gomes, perto de Santa Clara.

“Tudo é próximo… mas aqui é longe”

É um dia bom para vender guarda-chuvas. Na Casa Júpiter não há consenso sobre o que será melhor para o comércio: com carros ou sem carros, “o melhor é que venha a chuva para vender guarda-chuvas”, graceja Avelino. “Não faço ideia qual será a repercussão que irá ter. Os vimaranenses se pudessem entrar com o carro cá dentro, entravam. Temos parques, tudo é próximo, mas aqui é longe”, vaticina.

Os carros passam em frente à Casa Júpiter há décadas. Aliás, quem olha lá de dentro, vê o horizonte toldado pelos veículos estacionados – só naquele arruamento são cerca de dez lugares destinados somente para aparcamento. “Quando tenho uma ideia, aposto nela fortemente e defendo com unhas e dentes. Neste caso, ainda não tenho. Qual é a tua opinião?” - Avelino convida Vítor Meira a entrar na discussão. Para o outro comerciante “isto não está muito definido”. “Mesmo assim, acho que vai ser negativo para o comércio”, refere. Avelino olha lá para fora e pensa noutras cidades. Dá o exemplo de Santa Catarina, no Porto, da maior pujança de Braga – apesar de ver na cidade dos arcebispos um polo de atração que Guimarães “não é” – e do que vê “lá fora”, nas grandes cidades.

As imagens são recorrentes. Francisco Correia também as lembra: de cidades com ciclovias, que apostam na mobilidade suave e o número de bicicletas super o dos carros em larga escala. Mas nem sempre foi assim. “Quando dizemos que nos Países Baixos ou na Dinamarca se anda muito de bicicleta, não nos podemos esquecer que até aos anos 70 não era assim”, explica Rui Ramos. O choque petrolífero obrigou a uma mudança de hábitos, encorajada pela incorporação de condições no espaço urbano para que se adotassem estes comportamentos. Sem ter conhecimento do projeto que o município quer levar avante, o investigador indica que em Guimarães estão a ser identificadas “zonas em que se quer predominantemente dar prioridade aos peões, e à área urbana onde a cidade vai priorizar os modos suaves: bicicleta, trotineta, a pé”.

“É tão triste olhar lá para fora e nem pessoas andam. Antes da Zara, tiraram os correios, outra coisa que fez cair a pique o movimento”, Susana Freitas, comerciante

Rui Ramos explica ainda que, nestas intervenções, “o que se está a tirar é o trânsito de circulação e de passagem, não as pessoas que na verdade se querem lá deslocar”. “Em termos abstratos, para qualquer cidade, criar condições para que as pessoas circulem mais facilmente a pé é ir recuperar a essência do conceito de cidade”, salienta. “Uma rua urbana pedonal é muito mais vivenciada pelo comércio local do que uma rua onde as pessoas estacionam, circulam de carro, e os passeios são estreitos”. Ou seja, é “pouco atrativo” passear e apreciar as montras. “Disso nós temos exemplos, centenas de exemplos em cidades”, afirma Rui Ramos.

E é provável que dentro de pouco tempo, Avelino e Vítor, quando olharem para fora vejam um cenário muito diferente do atual. A ideia passa por instalar mobiliário urbano destinado aos mais novos, indica Domingos Bragança. “Vamos ter esse equipamento todo o ano, todos os dias, para as crianças que acompanhadas por pais e avós. Para além dos bancos, ter equipamento infantil é uma maravilha, será um espaço de encontro”, vinca o autarca. Domingos Bragança até realça que Guimarães está muito longe de ser pioneiro nesta pedonalização da sua centralidade. “As cidades mais contemporâneas, mais modernas e com políticas de ambiente e sustentabilidade, já avançaram há alguns anos”.

Mas Guimarães deve pensar, afiança Rui Ramos, a cidade para as pessoas que vivem e residem nela, mas também para as que vivem o ambiente citadino, mas que não residem nele. “No caso de Guimarães isso é muito periclitante. Há muitas pessoas que se deslocam diariamente de fora da cidade para dentro da cidade. E essas questões devem ser pensadas”.

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