“Perfil perdido”: nada é fixo nestas memórias em forma de postais
A estreia de “Perfil Perdido” aconteceu em novembro de 2020, na metrópole turca de Istambul, estendendo-se por 75 minutos. Mas nem sempre foi essa a duração da peça, já exibida noutros palcos antes de chegar ao Centro Cultural Vila Flor (CCVF), na sexta-feira, às 19h30, e no sábado, às 11h00. “As sequências têm dimensão variável, dependendo do que está a acontecer entre os intérpretes”, explicou o encenador da obra, Marco Martins, após o ensaio mostrado aos jornalistas.
Esses intérpretes são Beatriz Batarda e Romeu Runa; a partir dos quatro postais que encerram várias das memórias de infância da “personagem” de Beatriz e da sua relação com o pai na visita a obras de arte pela Europa fora, os protagonistas tanto pareciam antagonizar-se, como fundirem-se um no outro, em sucessivas imagens inspiradas nessas pinturas.
Fio condutor para a dramaturgia do espetáculo, esses postais sugerem que as memórias podem ser mera ficção, não sendo sequer fixas no tempo. “As memórias são ficção. Para um certo evento da infância, as minhas duas irmãs constroem uma memória que é diferente da minha”, exemplificou.
A partir desta viagem ao passado que sobrevive, “Perfil perdido” explora a relação entre a arte e o real, as questões da autoridade paterna e ainda as de género - há situações em que os protagonistas assumem traços um do outro -, num contexto em que as linguagens do teatro e da dança estão envoltas numa diversidade sonora, que vai do samba à música clássica europeia.
“É um espetáculo inqualificável”, diz o encenador e realizador de cinema, aludindo à multidisciplinaridade artística e aos protagonistas que desdobram em várias individualidades, escapando à definição tradicional de personagem.
Encontro de linguagens
Ao lado do realizador, Beatriz Batarda frisou que o texto e a encenação encaixaram bem na sua experiência pessoal, pelo contacto que tem com a arte desde a infância, fruto do pai ser artista plástico – é o pintor Eduardo Batarda. A atriz reconheceu, assim, ter sido difícil escapar à apropriação de memórias pessoais para a construção da performance que apresenta em palco, mesmo sendo teoricamente contra esse processo. “Foi difícil de respeitar essa teoria. Houve um desejo grande de encontrar memórias pessoais, por causa da minha experiência”.
A obra que sobe ao palco do CCVF exigiu também a busca de um chão comum para as linguagens de Beatriz, o teatro, e de Romeu, a dança, num processo criativo que, ao invés dos dois meses habituais, durou cerca de um ano, com três residências artísticas e um conjunto de material criativo que dá suporte às tais apresentações variáveis, explicou Marco Martins.
O “Perfil Perdido” é também um ato de proximidade, quer entre os intérpretes, mas também os intérpretes e o público. Cada um dos espetáculos vai ter menos de 100 pessoas a assistir, todas elas bem perto do palco. A plateia também será parte da peça, ora tendo de tomar decisões com os postais que vai receber, ora sendo o alvo das performances dos intérpretes, ora assistindo a atos de ilusionismo. “Acontecem vários momentos mágicos”, disse Beatriz Batarda. “Haverá diálogo entre nós, mas também entre nós e o público. Há momentos em que a quarta parede se quebra”, antecipou.