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“Quem começa e acaba as guerras são os políticos e os diplomatas”

Redação
Sociedade \ quarta-feira, abril 27, 2022
© Direitos reservados
Esteve em cenários complexos e de risco na Síria e na Faixa de Gaza, encontrando-se atualmente em Pemba e com possibilidade de rumar até a Ucrânia. Entrevista a David Miguel Delgado.

O vimaranense David Miguel Delgado, 43 anos, engenheiro mecânico, fala das suas experiências de vida e critica “as sucessivas empresas de gestão do condomínio [Governos portugueses] que continuam a pintar a fachada do prédio, mas não resolvem o problema do esgoto”.

ENTREVISTA: José Luís Ribeiro e Esser Jorge Silva
FOTOS: José Luís Ribeiro

Voluntariou-se para trabalhar no Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV). Disponibilizar-se para estas causas é uma vocação de uns poucos, ou a existência de poucos voluntários significa que poucos se importam?

Foi uma coincidência e das melhores opções que tomei. Estava em Angola, tinha concorrido para as Nações Unidas, não tive resposta e a minha mulher sugeriu-me o envio do curriculum para o CICV. Quanto ao resto, não é fácil arranjar candidatos porque exigem que se fale duas línguas (além da nativa) e um grau académico em áreas das operações (engenharia, medicina, etc). Também é preciso estar disposto a dormir ao som do gerador, com água quente apenas às vezes, a comer massa com atum várias vezes por semana e a aturar “pancadas” de colegas de trabalho da Colômbia, do Malawi ou da Indonésia (risos). Ganharia mais dinheiro a construir estádios de futebol no Qatar mas ... é mesmo uma paixão louca que vivemos no CICV.

 

Revolta momentânea, uma revelação, um desígnio espiritual ou é uma condição existencial?

(risos) É um pouco de tudo. Em 2010 vi, na televisão, delegados do CICV a descerem de helicóptero para assistirem as vítimas do terramoto no Haiti e ficou-me na cabeça essa hipótese de trabalhar a ajudar pessoas. Em 2018, em Angola, trabalhava numa obra de 67 milhões de euros para abastecer de água uma cidade de 200 mil pessoas. Parte do dinheiro já tinha sido desviado para pagar “luvas” ... As autoridades estavam mais preocupadas em jantaradas ... A população em sofrimento permanente e eu a tentar que as coisas andassem. Foi aí que cheguei ao limite. Há coisas com as quais não se brinca. Foi quando concorri ao CICV.

 

Não terá sido fácil abordar a família com a intenção de mudar de vida …

Uiiiiiiiii. Liguei à minha mulher a dizer que tinha sido aceite pelo CICV. Ficou toda contente porque estava previsto ir para a República Democrática do Congo fazer uma obra de hidráulica urbana, ou seja, mais ou menos o que fazia antes, num cenário controlado, mas ao serviço de uma entidade melhor. Passados 15 dias a informação foi atualizada: destino Aleppo (Síria). Fez-se um silêncio …. (risos).

 

O que nos guia em território de guerra, o medo ou a coragem?

Estive em dois cenários de bombardeamentos e as pessoas com quem estava reagiram de forma aleatória. Nesses contextos, a equipa é fundamental. O medo é algo que se propaga. Se um colega estiver em pânico os outros têm que criar mecanismos de distração para minimizar o medo dessa pessoa. Caso contrário entra tudo em pânico e, depois, aí sim, temos um problema.

Coragem ... eu chamar-lhe-ia racionalização da situação. Estamos no meio da guerra e não sabemos quando acalma ou acaba. Somos agentes privilegiados (temos informação que mais ninguém possui), precisamos de assistir as pessoas, as infraestruturas e transmitir toda a informação possível aos centros de operações. Ou panicamos e ficamos em stress ou começamos a trabalhar 12 a 14 horas por dia e, quando já estamos no limite, o tempo passou e somos substituídos pela equipa seguinte. Racionalizar é o melhor caminho.

 

Qual o impacto interior quando se passa de uma geografia ordenada para o caos de uma guerra?

Tive, até à data, duas experiências distintas. Numa fui levado até à linha da frente. Chegamos à fronteira do país e somos encaminhados para a capital onde passamos uma ou duas semanas, só depois avançando para a linha da frente. É um processo progressivo, de constante surpresa, mas de adaptação. O cenário vai ficando cada vez pior … mas vamo-nos habituando ...

Tive também a experiência de estar numa varanda a conversar com colegas e, de repente, ver 4 rockets a saírem disparados. Os telemóveis e rádios a tocarem e, em segundos, temos que pôr em prática os procedimentos para os quais recebemos formação. Em qualquer dos casos temos que ter consciência que estamos ali porque nos voluntariamos e que há gente (crianças, velhos, deficientes) que precisam de nós. Quem não conseguir superar aquele “vazio no estômago” e o “nó na garganta” é melhor mudar de profissão.

 

Com a desgraça à frente dos olhos, como se consegue manter uma posição de neutralidade?

Focados na resolução dos problemas mais do que na sua interpretação. Nas zonas de conflito não adianta dizer que a culpa é deste ou daquele porque a situação não vai alterar por causa disso. No CICV temos pilares fundamentais: neutralidade, imparcialidade, independência, humanidade, unidade, universalidade e serviço voluntário. Temos que olhar para o ser humano com a máxima dignidade, independentemente da cor, raça, credo ou orientação sexual. Não nos focamos em política, mas sim nas pessoas.

 

Ao liderar equipas de reposição de serviços essenciais (água, habitação, vias de comunicação, etc) qual a maior dificuldade?

As diferenças culturais. Chefiei mulheres muçulmanas em que tinha que manter uma distância mínima de um metro. Para analisar um desenho no computador tínhamos que o imprimir.

Na Síria estavam avariadas umas válvulas de fabrico russo da década de 60. A solução era trocar por materiais e tecnologias atuais da europa. Recusaram e um trabalho que deveria demorar dois dias levou semanas porque foi necessário retificar as válvulas numa serralharia local (a empresa russa já nem existe). As equipas com quem trabalho são compostas por profissionais locais e por outros expatriados de diferentes zonas do mundo. É fundamental não ferir a cultura ou a forma de trabalho de cada um.

 

A propósito da Síria afirmou que “vão demorar muitos anos a curar as feridas do que viram, sentiram e perderam. Temos que andar para a frente, temos que reerguer a cidade, voltar a dar cor a isto tudo”. A busca “da cor”, a busca do “arco-íris”, mesmo que ele esteja no céu, é complexa …

Na Síria visitei um centro de acolhimento de moribundos, pessoas que perderam tudo: família, rendimentos e até a própria sanidade. Antes da guerra, eram pessoas comuns, com família, um trabalho, uma rotina. Acabaram recolhidas nesse centro onde tinham comida, higiene, cuidados de saúde mínimos e, no limite, uma “nova família”. Ao conversar com o responsável do centro, descobri que era uma unidade particular, sem ajuda estatal. Esse homem, pagava do seu bolso o acolhimento a 140 pessoas de forma permanente. Esse homem, na casa dos seus 60 anos, tinha perdido 5 filhos, as noras e genros, a mulher e alguns dos seus netos. Do bombardeamento apenas sobreviveram ele e duas crianças. Perguntei-lhe onde conseguia forças para acordar todos os dias, tratar do seu negócio e gerar receitas para alimentar diariamente 140 pessoas. Explicou-me que não se tinha suicidado por causa dos dois netos. Que os queria ver crescer. O centro, disse-me, era uma forma de se manter ativo, de não pensar muito no que tinha acontecido, mas de pensar, sobretudo, no que era preciso para o dia seguinte. Não é fácil …. mas, perante a tragédia, o “arco-íris” é pensarmos no dia seguinte mais do que no dia anterior.

 

O que vê e sente nesses cenários também deixa marcas …

Vemos coisas que nem devem ser ditas. A barbárie humana pode assumir proporções indescritíveis. O nível de violência a que, por vezes, estamos expostos é … melhor nem falar.

O CICV leva muito a sério a saúde, física e psicológica, dos seus colaboradores e temos todo o suporte. O apoio dos colegas com quem trabalhamos também é importante pois sabemos que temos que nos proteger e vigiamo-nos. Se se entender que alguém não tem condições para continuar é imediatamente substituído, não se deixa que a situação afete de forma intensa ou permanente nem que seja comprometida a segurança do grupo. Para manter a sanidade, podemos sair do contexto com alguma regularidade e raramente fazemos 2 ou 3 missões seguidas de grande intensidade. Depois dos bombardeamentos de Gaza, entrou uma equipa de assistência rápida para que cada um de nós pudesse passar, pelo menos, 15 dias fora daquele contexto.

 

E recordações positivas ?

Muitas. Os laços de amizade que se criam em cenários de guerra são para a vida toda. Mantenho contacto frequente com colegas da Síria e da Faixa de Gaza. Ficarão para sempre, também, as memórias dos sucessos no terreno: a rede de abastecimento de água do campo de refugiados palestiniano, a remodelação da urgência do maior hospital de Gaza, a extensão dos sistemas de irrigação da zona rural de Alepo, a duplicação do centro ortopédico, o edifício forense de Alepo, entre muitos outros projetos que ficaram a funcionar e que tiveram um impacto direto e imediato sobre as populações.

 

Na Faixa de Gaza esteve recolhido em bunkers, o contacto direto com a guerra, o contacto com o drama das populações … “Ninguém sai donde tem paz, quero ir para casa, embarcar num golpe de asa”, escreveu Pedro Abrunhosa ... Esta música está muitas vezes presente ?

(risos) essa música está sempre presente, mas não deve ser ouvida muitas vezes. Deita-me abaixo porque tenho sempre vontade de “pisar a terra em brasa” e sinto muitas saudades do “cheiro a pinheiro e a serra”. Quanto ao “ninguém sai donde tem paz”, por muito que custe a acreditar, profissionalmente, tenho muita mais paz de espírito em cenários de guerra do que no tempo em que trabalhei em Portugal. No estrangeiro o meu sucesso e das minhas equipas é o sucesso da empresa, das populações, é o combate à pobreza, à desigualdade… Em Portugal, o meu sucesso sempre foi o motivo para a inveja, o oportunismo, a perseguição das minhas equipas. Tive azar no meu país (risos).

 

Saudade é um dos sentimentos mais presentes no dia-a-dia ou outros se sobrepõem?

Somos constantemente invadidos por emoções, seja medo, desespero, adrenalina, felicidade, apatia, etc. Como português, que isto varia de povo para povo, sinto uma saudade imensa da família. Tenho colegas nórdicos que conseguem estar 6 meses sem ir a casa, mas isso, para mim, era impossível.

 

Português …

Eh pá ... a saudade, a comida, fraternidade … Desde que fui para o estrangeiro sinto-me muito mais português, sinto-o de forma mais intensa. Não sou português porque tenho um passaporte. Sou português porque tenho saudade como ninguém. A comida não é um meio de sobrevivência, é também um prazer... Sou adaptável a qualquer contexto mas há qualquer coisa no ADN que supera o carimbo do passaporte.

 

Toda a destruição em que opera é o resultado de armas produzidas por países tecnologicamente desenvolvidos. Quando se caminha por destroços, lembramo-nos disso?

Mais do que os destroços, até porque sou engenheiro e (re)construir é a parte fácil, o mais difícil de aceitar são os danos colaterais das guerras. Já vi centenas de crianças amputadas. E isso, sim, é extremamente difícil de aceitar e de lidar.

 

As guerras discutem-se e negoceiam-se em hotéis de 5 estrelas ?

(risos). Não são literalmente discutidas entre dois whiskeys no bar do Four Seasons Hotel. Ainda assim é uma boa metáfora. As guerras podem ser motivadas por um sem número de argumentos mas quem começa e acaba as guerras são sempre os políticos e os diplomatas. E esses não andam onde eu ando. Esses costumam estar nos hotéis.

 

Depois da Síria, Faixa de Gaza e Pemba prevê rumar em missão para a Ucrânia?

É na sede, em Genebra, que se decidem os elementos que vão integrar uma determinada missão, mas existe uma forte probabilidade. Se não falasse português estaria agora, provavelmente, em Kandahar no Afeganistão. Mas como falo português e me especializei em hidráulica urbana fui enviado para Pemba.

 

Como se vê Guimarães e Portugal a partir desses locais ?

Como o meu porto de abrigo, onde está a minha família, onde estão as minhas raízes. Profissionalmente, não me passa pela cabeça voltar. Acho que já fiz a minha parte. Fiz rádio, fui voluntariado, dirigente da Associação Académica da Universidade do Minho, senador da UM, lancei o jornal Geração XXI, relancei a Juventude Socialista em Guimarães, fui deputado na Assembleia Municipal, membro da comissão política distrital. Estive envolvido em obras como o Sistema de Saneamento da Póvoa de Varzim e Vila do Conde, arranquei com o sistema de abastecimento de água do Rabagão, remodelei a ETA da Queimadela (Fafe), estive na construção da ETAR de Lordelo, na ampliação da ETAR de Serzedelo, etc.

 

Portugal desiludiu-o ?

(risos). O pastel de nata nunca me desiludiu assim como a francesinha à moda do porto. Nem a música da Mariza, muito menos a escrita de Fernando Pessoa, nem o sol da primavera, nem a laranja do Algarve. O que me desilude são algumas pessoas ligadas à política e algumas das suas políticas. O combate à corrupção, a revisão da constituição e a reforma da função pública, chateia-me profundamente a TAP e os argumentos para salvar um poço sem fundo. Enfim, o que me chateiam não são os “moradores do condomínio, são mesmo as sucessivas empresas de gestão do condomínio que continuam a pintar a fachada do prédio, mas não resolvem o problema do esgoto”.

 

Chegou a ter militância partidária ativa quando era mais jovem. A que se deveu o abandono ?

Nunca foi minha intenção seguir essa carreira. A política é um serviço público que deve ser exercido sem nunca se perder a noção da realidade. Não me revejo no modelo dos partidos nem na lógica dos políticos. Não temos uma verdadeira democracia representativa e os políticos obedecem a uma máquina partidária e não à vontade do povo. Veja-se isto: o ex-presidente da Câmara de Lisboa perdeu as eleições porque os lisboetas entenderam que não era essa pessoa que os deveria representar. O que fez o Primeiro Ministro ? Nomeou essa mesma pessoa para representar não só os lisboetas como todo o povo português. E ainda podia falar de BES, TAP, TGV, aeroportos, Benficas, Tancos e empreiteiros e um sem número de trapalhadas que se devem ao modelo atual ...

 

É uma pessoa de fé ? Existe alguma figura da Igreja Católica que mais o tenha marcado e tenha influenciado o seu quotidiano ?

Não sou uma pessoa e fé. Sou agnóstico. Contudo, há pessoas religiosas que respeito profundamente. Jesus Cristo pelas suas palavras e sabedoria, madre Teresa de Calcutá pela sua infinita paixão e dádiva pelos povos. O atual Papa Francisco que me parece uma pessoa com muito bom senso e está a nadar contra muitos redemoinhos no Vaticano. Felizmente, aparecem pessoas que trocam o material pelo metafísico e isso é de louvar mesmo que não se acredite nas suas crenças.

5 RESPOSTAS RÁPIDAS
  1. Sugestão gastronómica?

Como estou em Moçambique sugiro Frango à Zambeziana, com leite de coco.

  1. Que livro está a ler?

A Divina Comedia de Dante.

  1. A música que não lhe sai da cabeça?

Adoro música ! As que nunca me saem da cabeça: “nós pimba” do Emanuel, “Last Christmas” dos Wham” e aquela que dizia “Voltei, voltei. Voltei de lá. Ainda ontem estava em França e agora já estou cá” (risos).

  1. Um filme de referência?

Tantos ... “Eles estão por todo o lado” (Yvan Attal), uma comédia brilhante para se perceber como os judeus acham que os outros os veem.

  1. Passatempo preferido?

Não é passatempo, mas momento: estar com os meus filhos. A fazer tudo e nada.

[Conteúdo produzido pelo Jornal O Conquistador, publicado em parceria com o Jornal de Guimarães. Entrevista da edição de abril de 2022 do Jornal O Conquistador.]

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