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"Ainda estamos na fase de perceber como abordar a doença de Alzheimer"

Pedro C. Esteves
Saúde \ sábado, março 05, 2022
© Direitos reservados
A doença de Alzheimer, a memória e a perda dela. O vimaranense Tiago Gil Oliveira investiga as "fronteiras do desconhecido". Com a pandemia, prevê "uma percentagem de doentes adicional" no devir.

Tiago Gil Oliveira é médico do serviço de neuroradiologia do Hospital de Braga e docente na Escola de Medicina da Universidade do Minho, onde se formou. Vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Neurociências e coordenador da linha de investigação em mecanismos de memória e da patogénese da doença de Alzheimer no Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde (ICVS), nesta entrevista ao Jornal de Guimarães o investigador natural da freguesia de Azurém explica em que ponto está a investigação no campo da doença de Alzheimer.

Na "fase da infância" de perceber como abordar a doença, Tiago Gil Oliveira reforça que "precisamos de muito mais investigação". "Aquilo que já sabemos é que temos de “atacar” o mais precocemente possível, antes de haver neurodegeneração", reforça. Para além das formas familiares da doença de Alzheimer, o vimaranense sublinha que "há também fatores ambientais que contribuem para o desenvolvimento da doença".  

 

Jornal de Guimarães (JdG): O interesse pelas doenças neurodegenerativas desperta quando começa a estudar ou antecede a entrada na universidade?

Tiago Gil Oliveira (TGO): O meu interesse começou durante o curso de medicina, quando comecei a estudar como é que o cérebro funcionava. Dentro desses mecanismos inerentes ao funcionamento do cérebro, um dos que me fascinou mais foi o processo de formação das memórias. No fundo, as memórias são aquilo que nos definem. Quando a componente letiva acabou, quis continuar a estudar e contribuir para o conhecimento para lá do limite dos livros de texto. E isso foi o que me motivou a começar a fazer investigação científica, a trabalhar nas fronteiras do desconhecido. Depois de algumas experiências no Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde (ICVS), fiz o doutoramento integrado no curso de Medicina entre a Universidade do Minho e a Universidade de Columbia e passei três anos em Nova Iorque a estudar os mecanismos de formação de memórias no contexto da doença de Alzheimer, focando-me num aspeto particular: o papel dos lípidos na memória e na doença.

JDG: Lendo acerca dos vários projetos e investigações que o Tiago integrou, o enfoque é sempre colocado no hipocampo. Parece haver dois os grandes objetivos: perceber porque é que certas regiões do cérebro são mais suscetíveis ou resistentes a doenças neurodegenerativas ao estudar doentes a partir de ressonância magnética; e depois, mais ao nível da Ciência Fundamental, o trabalho com ratinhos. Atualmente, o trabalho do Tiago ainda incide nestes dois pontos?

TGO: São esses os dois grandes focos e isso decorre do meu percurso clínico em paralelo com o meu percurso académico. Depois de ter terminado o doutoramento voltei para Portugal onde continuei as minhas investigações com abordagens mais ao nível da Ciência Fundamental – o meu doutoramento focou-se em modelos animais, para tentar perceber os mecanismos da doença de Alzheimer. Em paralelo com o meu percurso académico continuei a minha formação clínica, neste caso em neurorradiologia. A neurorradiologia permite-nos estudar como é que o cérebro está organizado, como funciona e de que modo é que conseguimos usar estes métodos para diagnosticar doenças. Podemos também utilizar estes métodos para tentar compreender essas mesmas doenças. E esse é o ponto de ligação com os meus estudos em Ciência Fundamental, onde tentamos responder a uma grande questão: quais são as regiões do cérebro que são mais afetadas ou mais resistentes em diferentes doenças neurodegenerativas. Focamo-nos no hipocampo e no córtex entorrinal, que são regiões importantes para a memória e aprendizagem.

No final de todas as investigações, o objetivo novas formas de diagnosticar doenças neurodegenerativas e novas estratégias terapêuticas. E o hipocampo é uma região muito interessante. É a partir daí que podemos perceber como é que as memórias se formam no nosso cérebro e como é que nós aprendemos novos factos. Falamos de memória, como o Tiago referiu, é quem nós somos. Mas tudo parece um enigma. O trabalho do Tiago contribui para levantar um pouco o véu?

Tentamos com a neuroimagem começar a perceber quais são as regiões e em que contextos é que as regiões do cérebro ficam afetadas – o hipocampo é uma das principais. Agora focamo-nos em sub-regiões do hipocampo – percebemos que não é homogéneo como um todo, há partes do hipocampo que estão ligadas a tipos de memórias específicos. E estamos a tentar perceber em que contextos é que essas sub-regiões do hipocampo ficam mais afetadas em diferentes contextos de doença. Em paralelo, nós tentamos ver a nível de modelos animais se essas sub-regiões estão ligadas a alterações moleculares específicas. Nós temo-nos focado num grande grupo de moléculas, que são os lípidos: importantes para várias funções das células. O nosso trabalho descobriu que a composição ao nível dos lípidos é diferente em regiões do cérebro. E também descobrimos que essa composição varia em contexto de doenças. Depois tentamos usar essas assinaturas moleculares para melhorar o diagnóstico das doenças e a avaliação do prognóstico.

 

 

Pode densificar um pouco acerca do dia a dia de um investigador desta área? Uma complexidade ainda em estudo por investigadores em todo o Mundo. Como funciona? Pode ser desmotivador, mas qualquer avanço é gratificante, suponho.

Não é comum fazer clínica, ser docente e investigador. É difícil coordenar todas estas atividades. Ao nível de investigação tenho a felicidade de poder trabalhar com uma equipa de investigadores que são de uma qualidade excecional. Nesta altura coordeno atividade de alguns desses investigadores e o dia-a-dia é planear as experiências com modelos animais da doença da Alzheimer e com modelos animais em que alteramos a composição de vias lipídicas específicas e depois tentamos perceber de que forma é que isso afeta a capacidade de formação de memórias e a aprendizagem usando esses mesmos modelos animais. Em paralelo, gosto de criar um clima na equipa de investigação, em que há uma discussão entre as pessoas que se dedicam ao estudo dos aspetos da neuroimagem e da sua relação com a neurodegeneração. Então há um diálogo entre todos e torna-se mais enriquecedor e inspirador para os investigadores. Ao nível da neuroimagem há uma série de investigadores a trabalhar no desenvolvimento de novas metodologias automatizadas para conseguirmos avaliar o hipocampo e córtex entorrinal, com o intuito de descobrir se há especificidade das alterações em ressonância para alguns tipos de défices de memória em contexto de doenças neurodegenerativas.

Isabel Santana, diretora do serviço de neurologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, refere que apesar da investigação e dos ensaios clínicos, “há 17 anos que não há um novo medicamento” para esta doença. Por que razão?

Realmente tem sido um dos grandes problemas e desafios. Encontrar novas armas terapêuticas. Nos últimos anos surgiu apenas um fármaco que foi aprovado nos Estados Unidos da América, e que está em avaliação nas instâncias europeias. E embora a aprovação deste fármaco que não seja consensual, é pelo menos uma janela de oportunidade e esperança de que realmente a investigação ao longo destes anos todos, está agora a começar a dar os seus frutos, como consequência de percebermos de um modo muito mais profundo os mecanismos da doença de Alzheimer. No entanto, comparativamente com outras doenças, como as doenças cardiovasculares e até o cancro, tem havido menos investimento nas doenças neurodegenerativas. Uma das consequências é que as opções terapêuticas também são menores. Embora menor, o investimento crescente que tem havido leva já a que consigamos perceber muito melhor, por exemplo, como a doença funciona, e começamos a pensar de um modo mais profundo em como desenvolver armas terapêuticas. Já percebemos que a doença de Alzheimer, assim como o cancro e as doenças cardiovasculares, tem um grande espectro. Para diferentes tipos de pessoas, no futuro, o que prevejo é que iremos necessitar ou de uma abordagem terapêutica multidisciplinar ou um contexto em que diferentes doentes irão ter especificidades no tipo de doença de Alzheimer que têm, precisando de um tratamento mais dirigido. Isto para dizer que precisamos de muito mais investigação. Acho que ainda estamos na fase de infância, na fase de perceber como podemos abordar a doença de Alzheimer. Aquilo que já sabemos é que temos de “atacar” o mais precocemente possível, antes de haver neurodegeneração.

O Tiago também trabalha em formas que permitam detetar o início da doença.

Exatamente. E acho que esse é o “Santo Graal” para conseguirmos desenvolver estratégias que funcionem para a doença de Alzheimer. No fundo, identificarmos a doença de forma precoce e atuarmos – em algumas situações se for possível com um carácter preventivo, identificando as pessoas que estão em risco de desenvolver a doença.

O stress crónico e a ansiedade são exemplos de fatores que podem estar na origem de patologias como a depressão e Alzheimer. Junta-se uma miríade de variáveis nesta equação. Para a deteção precoce é necessário identificar sintomas e nem nem sempre as falhas de memória são os primeiros, certo?

Uma das maneiras que temos para avançar na compreensão destas doenças é colaborando com os investigadores. Esse é um ponto muito importante. Há vários tipos de apresentação destas doenças. Talvez uma grande maioria destes doentes tenham regiões mais específicas a serem afetadas e vão ter o quadro mais clássico de défices de memória e défices de orientação espacial. Mas muitas vezes estes quadros dentro do espectro da doença de Alzheimer podem-se apresentar com alterações da linguagem, alterações do comportamento social, alterações do humor. No fundo, só acrescenta a esta variedade de subtipos dentro da doença de Alzheimer que ainda não compreendemos na totalidade. Mas pelo menos estamos sensíveis à existência de um grande espectro e gama de apresentações que lançam um alerta para nós começarmos a estudar estes doentes muito precocemente. É uma mensagem importante: salientar a grande variedade de apresentações e do espectro de subtipos dentro da própria doença de Alzheimer que nós só agora estamos a começar a compreender.

O Parlamento quer saber quantos portugueses sofrem de Alzheimer e outras demências. “É urgente implementar a estratégia nacional para as demências e reconhecer esta questão como uma prioridade de saúde pública”, lia-se num documento de 2019. Como olha para o caminho das doenças degenerativas no capítulo da perceção pública, informação? Estamos mais e melhor informados?

Acho que há um caminho a ser feito, mas já há muito que nós agora consideramos que antes não havia. Agora não olhamos para a doença de Alzheimer como algo que é quase normal do envelhecimento. Antes havia quase essa perceção de que a doença de Alzheimer seria algo normal no envelhecimento. Agora começa a ser quebrado esse tabu. Há o que chamamos o envelhecimento normal e há depois o envelhecimento patológico em que os défices de memória ou outros défices de comportamento dentro deste espectro da doença estão muito mais acentuados. Isso leva a que as pessoas levem os seus familiares a médicos diferenciados mais preparados para identificar estas alterações. E começamos a identificar estes doentes de forma mais precoce. O quadro geral já mudou, mas ainda há um papel a ser feito: ainda estamos a anos do que foi feito em outras doenças.

Como no caso das doenças cardiovasculares?

Sim. Mesmo quando um doente que tenha alterações nos níveis da pressão arterial, que pode não estar associado a sintomas, já se consegue diagnosticar com uma avaliação de um biomarcador específico (a pressão arterial) quando é que um doente precisa de medicação ou não. Acho que o futuro deste quadro das doenças neurodegenerativas poderá também passar pela aplicação de biomarcadores – que conseguimos medir do sangue, liquor, ou através da neuroimagem – e muitas dessas alterações provavelmente irão aparecer antes de desenvolver os défices comportamentais, antes da neurodegeneração, e isso é algo que queremos identificar: as alterações que conseguem predizer quais são os doentes que vão desenvolver as várias alterações comportamentais.

Suponho que isso seja bastante importante, ainda para mais quando se prevê que até 2050 o número de pessoas com demência em Portugal mais do que duplique. Como se explica esta prevalência da doença?

Há aqui dois aspetos. Em relação a este aumento que se prevê nos próximos anos, a principal razão para essas estimativas, que são preocupantes, é o envelhecimento da população. Dado que o maior fator de risco para a doença de Alzheimer é a idade, o facto de as populações serem mais envelhecidas, aumenta também o risco e a proporção de pessoas que estarão em risco de desenvolver a doença de Alzheimer. Estamos também a ser “vítimas” do avanço da medicina: conseguimos tratar doenças cardiovasculares ou cancro, que estão associadas a um grande impacto a nível da mortalidade, e estas populações, ao envelhecerem, estão também a ficar em risco de desenvolver outras doenças associadas ao envelhecimento. Sendo uma delas a doença de Alzheimer. 

O maior fator de risco é a idade, mas há também fatores genéticos?

Com o conhecimento que ganhamos, percebemos que há dois grandes fatores além do envelhecimento que aumentam o risco. Nós temos dois grandes tipos de doença de Alzheimer: formas familiares, que é uma minoria, em que sabemos que há uma mutação de um gene que pode ser herdado entre gerações – as estimativas é que sejam apenas entre 1 e 5% dos casos; e a grande maioria, que é o que chamamos doença de Alzheimer esporádica. Em geral o desenvolvimento dos sintomas começa mais tardiamente. A nível genético não há um gene que causa a doença, mas identificamos com estudos com milhares de doentes que há certas variantes de genes que aumentam o risco para o desenvolvimento da doença. Isso foi uma das grandes descobertas nos últimos 20 anos. Mas isto não explica todos os casos que desenvolvem a doença. Há também fatores ambientais que contribuem para o desenvolvimento da doença.

O que podemos fazer para combater o desenvolvimento?

Um deles é a atividade física. Está demonstrado que a atividade física de modo controlado e regular tem um efeito benéfico para várias doenças, inclusive para a doença de Alzheimer. Está também demonstrado a importância da alimentação – temos a felicidade de estarmos numa área geográfica que consome a chamada dieta mediterrânica, rica em vegetais e peixe ricos em lípidos, os chamados ácidos gordos omega 3. Na componente ambiental e comportamental, combater o stress e outras doenças psiquiátricas, a promoção da sociabilidade. Isto são algumas coisas que podemos fazer. Outros estudos mostram que o número de anos de escolaridade também tem um efeito protetor por aumentar a reserva cognitiva.

Exercício físico, estímulos, hábitos, sociabilidade, ansiedades. De que forma é que o contexto da pandemia pode afetar uma pessoa que vive com esta patologia?

Afeta bastante. E ao nível do acompanhamento, também. A pandemia tem sido negativa a vários níveis, e ao nível dos doentes com doenças neurodegenerativas tem um efeito ainda maior. Porque enquanto estes doentes estão inseridos num ambiente em que estão a interagir, a receber estímulos, ainda conseguem ter um efeito de proteção da evolução da doença. Sem ainda ter dados em que possa afirmar com certeza, o que é esperado é que haja uma progressão da doença de um modo mais rápido. O que se prevê é que daqui a uns anos possamos ter uma percentagem de doentes adicional, porque a pandemia é uma situação de stress crónico de um modo intenso e alongado no tempo.

A nível local, há mais respostas? Lembro-me do Café Memória Guimarães, que penso que já contou com a sua presença.

É uma iniciativa excelente a nível local e que dá oportunidade às pessoas de conheceram melhor a doença de forma coloquial, tirar dúvidas. Quando falo abordo globalmente, os avanços, o que se tem feito, tentando explicar de um modo preciso e ao mesmo tempo inteligível para quem ouve, esclarecer dúvidas em relação ao trabalho que desenvolvo. Tem sido uma excelente iniciativa.

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