Uma ânsia de despedaçar a opressão nem sempre diante dos nossos olhos
As sete personagens correm, sem olhar para trás. Mas de olhos no palco, o público vê-lhes as costas, não os rostos; só focando a atenção no ecrã, se vê Ivo Saraiva e Silva discursar sobre a falta de empatia que o expulsou de qualquer um dos cenários onde se discutiu a opressão da rotina, dos símbolos de poder ou de um simples relacionamento amoroso que sobrevive em perpétuos ciclos de tensão. Nesses segundos finais, todavia, é a ele que cabe o tempo de antena; os outros aparecem por segundos, de rosto fechado, concentrados no desconhecido.
Cada um dos espetadores que aplaudiu o elenco da peça de abertura da 33.ª edição dos Festivais Gil Vicente viu certamente uma soma de performances diferentes de quem estava ao seu lado. Quem se deslocou ao Vila Flor no final da tarde de quarta-feira viu teatro entrecortado por televisão; ou uma temporada de uma série televisiva pelas performances dos atores à sombra do que cabia no ecrã: grandes planos de rostos que nos convocavam a viver os seus problemas e as suas ilusões de fuga à redoma que os circunscrevia e gestos que simulavam a transmissão de adrenalina associada à linguagem da caixa mágica: um apontar de uma arma ou o simples “voltei” de Vítor Silva Costa, perante a surpresa dos restantes colegas de casa de banho, naquelas situações limite que fecham os episódios, antes de se avançar para o previously on que antecede o próximo.
“O nosso interesse em representar esses espaços em cima do palco era mostrar que há uma parcela da vida real a acontecer num território muito circunscrito do palco, e o resto é que como um exercício de metateatralidade. Por isso, é que há câmaras em cima do palco”, salientou Ivo Saraiva e Silva, ator e cocriador de Fora de Campo enquanto membro da coletivo Sillyseason, que integra ainda Cátia Tomé e Ricardo Teixeira, também atores e criadores da peça.
Quem viu a performance por cerca de uma hora e 20 minutos soube que não via só teatro mal subia o pano: de repente, ouvia-se um som espampanante, daqueles que ficam no ouvido, como os de um genérico, à medida que no ecrã se viam imagens das personagens nos três diferentes cenários: o bosque, a casa de banho e a biblioteca. Parecia um trailer.
Começa a narrativa na biblioteca e Érica Rodrigues solta um “vou embora”, numa referência clara à principal inspiração desta obra: A Casa de Bonecas (1879), criação de Henrik Ibsen na qual a personagem principal, Nora Helmer, insatisfeita com a falta de opinião a que está sujeita enquanto mulher, deixa o marido e os filhos no final. “Confronta-se com o paradoxo de deixar aquilo que mais ama para rumar ao encontro da liberdade, se é que ela existe, porque ela não sabe”, resumiu o cocriador, à margem do ensaio que antecedeu a peça.
O dramaturgo norueguês também foi inspiração quanto às dinâmicas dramáticas que fundou – as “tensões”, uma “narrativa hiper-realista”, em que a história é “sempre a mesma”, mas “contada por personagens diferentes” -, hoje comuns nas séries televisivas, prosseguiu Ivo Saraiva e Silva. De facto, aquele “vou embora” começa (mais) uma discussão entre as personagens de Érica e Ana Moreira, amantes que tentam um futuro para a sua relação e voltam sempre à mesma tensão de partida. A separá-las, há um busto masculino, ora acariciado, ora vilipendiado como símbolo de opressão: mais tarde, já desgastada pela infrutífera fuga para a “cidade”, que a levou ao bosque, Érica reflete sobre a história e a glorificação constante do “pelo”.
Enquanto esta ação decorre, não é possível sequer ver a totalidade dos corpos em ação: para nos dar a intimidade com os rostos no ecrã, a equipa de filmagem corta parte dos movimentos em palco. E nos décors ao lado, há coisas a acontecer: enquanto Érica e Ana discutem, há um combate entre as personagens de Ricardo Teixeira e de Vítor Silva Costa na sombra.
Sensacionalismo e esquizofrenia
“Estão sempre coisas a acontecer: pequenos pormenores, nuances. Os atores estão sempre presentes e a com a consciência de que estão a ser vistos e de que têm de complementar discursos com ações”, descreveu Cátia Tomé, cuja personagem começa a ação no bosque, antes de ser interrompida por Ivo Saraiva e Silva. Ainda na ilusão de uma revolução que a tire daquela repetição, parece, ao mesmo tempo, desencantada com a possibilidade, limitando-se a trabalhar. “Continua com os teus projetos invisíveis de uma vida desaparecida”, disse-lhe Ivo Saraiva e Silva, como se essas palavras tivessem o poder para a recordar da amante que perdera e para a fazer rumar à biblioteca.
Tida como formal, a biblioteca é o cenário de maior intimidade de Fora de Campo, ao passo que a informal casa de banho é o lugar onde se discute o lugar de cada um na sociedade, a frequente opressão das relações de trabalho e o “cheiro a podridão” que não se aguenta, diz Ricardo Teixeira. De fato azul brilhante, a personagem discorre sobre o sonho de uma “aldeia global digital”, enquanto Ivo Saraiva e Silva, o responsável pelos comentários sociais mais vincados, o critica.
Só quando está no banho, Ricardo Teixeira se liberta do riso cínico que pontua a sua ação para explodir num “quero ser feliz”, enquanto se prostra no chão, ou num simples “entretém-me”, voltado para Sérgio de Brito. Essa é a palavra-chave para um tempo de escape, que sintoniza todos os cenários: instantaneamente, todas as personagens se soltam em danças selvagens e aleatórias, como que atingindo um esboço de libertação antes de regressarem à opressão; é quase esquizofrénica a forma como quem está em palco varia entre esses estados, algo de que a peça pretende falar. “Vivemos numa era de forte manipulação. É importante termos consciência de que já não há ingenuidade, nem privacidade, nem verdade. Vivemos na era da pós-verdade, e isso levanta-nos muitas questões. Do ponto de vista filosófico, estamos a viver numa era extremamente esquizofrénica”, reitera Cátia Tomé.
Este Fora de Campo também se edifica no árduo esforço dos atores para se aproximarem o mais possível do espetador. Esta busca pela atenção e pela empatia pode ser um caminho para tentarem escapar à prisão em que parecem viver, mas, indo além da narrativa, pode também ser uma crítica ao “sensacionalismo” em que a sociedade vive mergulhada. “Escolhemos essas tensões e esses momentos-chave nas relações, como se fossem a única coisa que vendesse, a única coisa que captasse a atenção, a única coisa que o público quer ver. Tudo o resto não interessa: não vende, não cativa”, prosseguiu a atriz.
O uso do telemóvel é compreensivelmente proibido numa sala de espetáculos. Nesta obra, em concreto, a possibilidade do espetador baixar o pescoço para mais um interminável scroll, além de o erguer e de o rodar para os lados, seria apenas mais uma camada neste ciclo de construção e perda de atenção que é Fora de Campo.
A democracia e o entretenimento em reflexão
Os Festivais Gil Vicente prosseguem até 11 de junho, com mais cinco espetáculos: esta semana encerra com as reflexões sobre a democracia proporcionadas por Cordyceps, de Marco Mendonça, Eduardo Molina e José Pedro Leal (19h30 de quinta-feira, no Pequeno Auditório do Vila Flor), e por A fragilidade de estarmos juntos, de Miguel Castro Caldas, António Alvarenga e Sónia Barbosa (19h30 de sexta-feira, no Centro Internacional de Artes José de Guimarães). Na segunda semana, há performances sobre a toxicidade deste tempo, sobre a dualidade entre entretenimento e aborrecimento e sobre a ideia de fim, com Memorial, de Lígia Soares (09 de junho), Off, da Mala Voadora (10 de junho) e Ainda estou aqui, de Tiago Lima (11 de junho).
* Créditos das fotografias: © Alípio Padilha.