Vimaranenses a banhos na Póvoa: uma tradição antiga que não arrefece
Areia grossa, água gélida, mar que afunda repentinamente. Barracas listadas, nortadas, o Passeio Alegre e o Guarda-Sol. Um cenário conhecido dos vimaranenses, que se habituaram, há várias gerações, a fazer da Póvoa de Varzim a sua segunda casa. Um fenómeno facilmente explicável pela proximidade geográfica que leva a que a zona mais próxima de Guimarães em que o Oceano Atlântico banha a costa seja a Póvoa.
Numa estatística pouco cuidada, não será descabido dizer-se que a maioria dos vimaranenses terá presenciado pela primeira vez o mar na Póvoa de Varzim. É assim desde que há memória. Mudaram-se os tempos, as redes viárias, os transportes e até as mentalidades. Na sua essência a ligação entre as duas cidades mantém-se. As fotos a preto e branco em cima do pequeno cavalo de pasta de papel junto ao Cego de Maio ajudam a reavivar memórias, revisitando filmes da infância a brincar na areia. Filmes como os que prendiam a atenção no Teatro Garrett.
Os 50 quilómetros que separam as duas povoações já foram bem mais longínquos, e em tempos obrigaram a que uma ida à Póvoa tivesse de ser “uma saída programada e marcada com antecedência”. Nos dias de hoje podem ser feitos a qualquer altura, basta vontade de tomar um café sob a brisa do mar. Beneficiam os vimaranenses com a proximidade do mar, cresceu a Póvoa de Varzim, uma pequena comunidade piscatória, que teve na romagem à costa dos vimaranenses, e não só, a oportunidade para se desenvolver.
Pelo meio sobram muitas histórias, gerações atravessadas e namoros de verão que não ficaram enterrados na areia. À boleia deste vaivém o Jornal de Guimarães foi atrás destas narrativas, que já Ramalho Ortigão dava conta em 1876 no seu livro As Praias de Portugal, referindo que “o high-life de Guimarães”, entre outros, povoava as ruas da Póvoa de Varzim no verão. Ainda assim é; essencialmente em agosto, mas também em julho e setembro.
Comecemos pela praia. O sítio por excelência que atrai as pessoas. Batemos à porta do banheiro mais antigo em atividade, a concessionar as conhecidas barracas há século e meio. Segue já na terceira geração perto do Diana Bar, que foi um ex-libris na Avenida dos Banhos, hoje transformado em biblioteca. António da Hora é o nome da concessão, de António Bicho, como era conhecido.
“De Guimarães? Ui, vinha muita gente. E continua a vir”, diz o irmão mais velho da família Bicho, que depois da desconfiança inicial começa a fazer relatos do passado. “Na minha infância tinha muitos amigos de Guimarães. Vinham todos os anos e isto estava tudo cheio, era demais. Tínhamos 130 barracas que ficavam encomendadas de um ano para o outro. E se alguém desistia? Sete cães a um osso”, recorda, acrescentando que havia quem oferecesse mais dinheiro para poder ficar com uma barraca.
“Ir à Póvoa é encontrar e reencontrar gente de Guimarães”. A dica é dada por Deolinda Carneiro, diretora do Museu Municipal de Etnografia da Póvoa de Varzim. Ora, no banheiro mais antigo da Póvoa, de onde será uma das mais antigas banhistas? “Se são de Guimarães temos aqui a senhora ideal, já é da casa, amiga da família. Passa cá férias há vários anos. É chamar a senhora Aurora, que estão aqui jornalistas da terra dela”, lança António da Hora.
“Podia faltar muita coisa, vinham aqui buscar guardanapos, ou até os garfos, mas o vinho nunca esqueceu”, António da Hora, banheiro
Chega-se a nós Maria Aurora, senhora simpática de 81 anos, nascida em Ronfe. “Então vocês também são do Afonso Henriques?”, questiona com um sorriso amedrontado de quem não está a perceber muito bem o que se passa e porque a foram chamar à fila 2 do setor 18. Depois de explicada a natureza da conversa, faz-nos sentir em casa. Afinal de contas, para quem passa férias há 75 anos neste local, também já está em casa.
“Comi aqui um peixinho ao almoço que estava muito bom. Tratam-me muito bem aqui”, começa por dizer, descrevendo depois a sua ligação à Póvoa de Varzim. “Era pequena quando comecei a vir para cá com a minha mãe, na camioneta do Soares. As malas ficavam em cima e depois trazíamos umas cadeirinhas em baixo. Vim sempre para uma casa alugada. Os meus filhos ficaram homens, compraram carros e vêm-me trazer. Faço praia aqui desde os cinco anos”, atira.
Recordações que António da Hora também tem. “Então não me lembro de isto ficar aqui cheio de autocarros, era miúdo. Lembro-me da confusão a sair dos autocarros, cada um a ir buscar as suas coisas e a vir para escolher o sítio. Traziam a merenda, podia faltar muita coisa, vinham aqui buscar guardanapos, ou até os garfos, mas o vinho nunca esqueceu”, atira com gargalhadas, apontando também que para manter a bebida fresca se colocavam as garrafas ou garrafões na areia, onde a água do mar já banhava, presos com uma corda à última barraca.
Deixamos Maria Aurora seguir por entre a fila de barracas ter com o seu neto, após explicar, o que a leva a não preterir a Póvoa aos outros sítios que já passou. A resposta é instantânea. “Adoro vir para aqui. Quem me dera ter um apartamento e vir para cá morar, gosto muito de estar à beira-mar. Já fui a muitos lados, a Benidorm, Marrocos, Gibraltar, ao Algarve… Mas, para mim, não há como isto”, conclui.
A Junqueira que espera dez meses pela azáfama de Guimarães
Rompemos pela Rua da Junqueira. Espaço nobre da Póvoa de Varzim, liga a Avenida dos Banhos ao centro da Póvoa, a Praça do Almada, onde estão os Paços do Concelho e a escassos metros da antiga estação de caminhos-de-ferro, onde chegavam também vários vimaranenses de comboio. Sem automóveis, a Junqueira é uma autêntica passerelle de lojas que, para além de ligar o centro ao mar, é o local por excelência para passeio.
Lá encontrámos Abel da Costa, com um boné do Vitória. Vimaranense, pois claro, está desde tenra idade, há mais de cinquenta anos, emigrado em Paris. Continua a seguir a tradição e quando vem a Portugal, para além de Guimarães, não deixa escapar o saltinho à Póvoa. “Sempre passei férias na Póvoa, tenho o hábito de criança; já os meus avós e os meus pais vinham”, diz Abel da Costa, que tem residência em São Torcato.
Ainda se lembra de uma das tiradas iniciais? Que uma ida à Póvoa era uma saída que tinha de ser programada? É de Abel da Costa. “Agora venho de carro, mas antigamente vinha de camioneta, nas excursões. Era preciso três horas para chegar aqui. Era uma saída, era preciso planear. Hoje, se for preciso, venho cá tomar um café”, explica. Na Póvoa encontra amigos que fez ao longo destes anos, poveiros, mas também vimaranenses que, muito provavelmente, encontra mais facilmente junto ao mar do que em Guimarães.
Uns metros à frente Artur Barroso, gerente de um estabelecimento de restauração há duas décadas, confirma a tendência que já era esperada. “No verão a nossa maior clientela é de Guimarães, o cliente mais antigo desta casa já cá vem há 40 anos, um empresário da indústria têxtil. Temos noção de que a maioria dos clientes é do Vale do Ave, em que Guimarães é o forte”, repara.
Com os clientes há já uma ligação de amizade, ao ponto de perceber que algo não está bem quando determinado freguês não aparece como é costume. Com felicidade vê que a continuidade está assegurada. “Tenho clientes mais velhos, que vêm para casas próprias ou alugadas, e tenho já os filhos, e até netos, que também já têm esse hábito. Quem tem casa aproveita os fins de semana também”, diz o gerente do Franganito.
“A Póvoa deve muito ao pessoal de Guimarães, que investiu cá, se não isto era uma terra pequenita”, Nuno Barros, Casa Edmundo (Rua da Junqueira)
Luzes cintilantes, movimento a toda a hora, um ar de metrópole. Assim é a Rua da Junqueira no verão, jovial e apelativa. A meio está a já antiga Casa Edmundo, com o neto Nuno Barros à frente do negócio. Destaca desde logo a importância dos vimaranenses: “As pessoas pensam que isto tem sempre muita gente, mas no inverno, em janeiro e fevereiro, é muito morto. Isto é bom em julho e agosto”.
Rapidamente a conversa vai para o senso comum. Com mais posses, comprando casa, ou com menos posses, alugando, o destino é o mesmo para vários estratos sociais vimaranenses. “Na parte de trás da Avenida dos Banhos em praticamente todas as casas se alugam quartos”. Sendo Guimarães o berço da nação, quase que se pode dizer que potenciou também os primeiros passos de um conceito que hoje se conhece como Alojamento Local. Eram, e continuam a ser, habituais as inscrições “aluga-se julho, agosto e setembro para férias” nas portas e janelas das casas.
Nuno Barros, de 46 anos, não tem dúvidas. “Na marginal há muitas casas de gente de Guimarães. A Póvoa deve muito ao pessoal de Guimarães, que investiu cá, se não isto era uma terra pequenita”, sustenta. Não é do tempo das casas senhoriais à beira-mar, muitas de vimaranenses. Casas que foram empurrando os pescadores para as Caxinas. Viu o raiar das construções em altura nas primeiras filas em frente ao mar, a partir da década de setenta do século passado.
Comboio como alternativa às demoradas viagens de carro
Nesse tempo o autocarro, e o carro, eram o forte nas viagens de Guimarães para a Póvoa. Viagens longas pela Nacional 206, pouco mais de 48 quilómetros que em condições normais se fariam em cerca de uma hora. Naquele tempo não, então o regresso, ao fim do dia, era um suplício de quase três horas por uma estrada sem grandes condições, fila provocada pelas camionetas e paragens intermináveis devido às passagens de nível.
No comboio, através da linha de Famalicão, seguiam também muitas vimaranenses. Alfredo Costa tem uma papelaria junto à estação e recorda esses tempos, até 1995, quando o comboio deixou de chegar à Póvoa. “As pessoas saíam carregadas dos comboios, traziam tudo para as férias: malas, arroz, cebolas; ou o farnel para o dia”, relata. Trabalhava até às 19h00 e depois ainda dava um saltinho até à praia para “conviver com o pessoal, da Póvoa e de Guimarães”.
Quando o tempo não ajudava as coisas complicavam-se para o aglomerar de pessoas que rapidamente saía do comboio e não podia ir para a praia. “Era o piorio, pediam para guardar as coisas nos cafés e depois andavam a passear e a ler revistas”, recorda, atirando uma frase muitas vezes dita: “Muitos casamentos foram feitos aqui na Póvoa, rapazes que por cá ficaram e raparigas que foram para Guimarães”.
A apenas alguns metros Renata Martins, há cinco anos a gerir o Sorriso Tapas Bar, mas há muito tempo funcionária da casa, pinta um quadro em tudo semelhante. “Era a loucura, sempre a dar-lhe. Vinham famílias grandes, pediam às seis torradas e seis galões. Mal fecharam a linha notou-se logo a quebra”, sustenta, apontando o facto de nessa altura haver muitos mais cafés naquela zona. “Pareciam formigas a sair do comboio”, remata.
Dez anos depois de se extinguir o comboio, Guimarães e a Póvoa ficam mais próximas. Pela A7 passou a ser possível ligar as duas cidades em pouco mais de meia hora, metade do tempo anteriormente necessário, simplificando todo o processo. O tal café que Abel da Costa fala está realmente perto. Uma proximidade que nem necessita de atenção do turismo poveiro.
“Percebemos quando as pessoas de Guimarães vêm, o Passeio Alegre fica cheio de gente, principalmente quando o São Pedro é simpático”, Lucinda Amorim, vereadora do turismo da Póvoa de Varzim
Lucinda Amorim, vereadora municipal com o pelouro do turismo, reconhece a “vertente bastante forte” de vimaranenses a visitar a Póvoa. “Uma tradição antiga” que se faz sentir a vários níveis. “Temos muito orgulho em receber os vimaranenses e todos que nos visitam. As pessoas de Guimarães sempre utilizaram a Póvoa como segunda habitação, têm cá apartamentos para férias e fins de semana. Percebemos quando vêm, o Passeio Alegre fica cheio de gente, principalmente quando o São Pedro é simpático. Não vou esconder que no mundo empresarial também temos relacionamentos, há muitos empresários de Guimarães, e do Vale do Ave, com a forte componente têxtil, a ficar por cá”, dá conta.
Nos dias de hoje a procura de casa na Póvoa por vimaranenses continua a ser uma realidade. “Quando a Póvoa ganhou construção de vários andares, muitas pessoas de Guimarães acabaram por comprar. Hoje há mais controlo, mesmo em prédios de andares reduzidos grande parte continua a ser de Guimarães”, reconhece a vereadora.
Cabelos arranjados na Póvoa à moda de Guimarães
Este périplo faz-nos também passar por Aver-o-Mar, onde Olívia Pinheiro está estabelecida há uma dúzia de anos. Natural de Guimarães, a cabeleireira tinha o seu salão na cidade berço, com clientela feita e um número considerável de funcionários. Acabou por mudar-se para a Póvoa, criando lá um novo salão. Fez o negócio com o empreiteiro ainda o prédio estava em construção. Acabou por ficar com um apartamento e com a loja.
O gosto pelas férias vem da tradição. Em casa tem fotos com as irmãs, ainda pequena, com o “casaquinho” para o frio. Continua a visitar com regularidade Guimarães, onde ainda tem casa, mas não tanta regularidade como no início. “Em Guimarães não tinha tempo para nada, aqui vou tomar um cafezinho, vou até ao mar, dou um passeio. Não trabalho tanto, o inverno nem é muito rigoroso e sinto-me bem aqui”, explica a vimaranense.
“Tenho notado que muita gente de Guimarães ao aposentar-se vem para a Póvoa”, sugere Olívia Pinheiro, que também recorda as férias em criança e os vizinhos de barraca, em que os vizinhos do areal eram já conhecidos, muitos também de Guimarães.
Terminamos a cruzada no quase centenário Guarda-Sol. Um dos estabelecimentos mais conhecidos, no epicentro da praia e “um ponto de encontro de vimaranenses”, conforme classifica José Maria Moura, funcionário da casa desde 1985. Habituou-se a ver o aumento de pessoas no verão, “muitos vimaranenses”, que se conhecem e acenam: “acontece muito as pessoas entrar e depois acenar de um lado para o outro”. Os jogos do Vitória são outro barómetro, juntando-se vários grupos para ver a bola. “Ainda ontem estavam aqui muitos a ver jogo”, diz José Maria Moura após o jogo Vitória-Leixões.
José Trocado também é funcionário do Guarda-Sol. É a segunda passagem pelo estabelecimento, depois de uma aventura pelo setor têxtil. Se não tivesse saído já seriam 47 anos consecutivos. Conhece bem as andanças e confidencia uma ideia já vertida por outros testemunhos. “Quase que se pode dizer que a Póvoa é a segunda cidade dos vimaranenses, as duas cidades têm uma forte ligação”, conta-nos.
Uma ligação benéfica para todos. “Foi um carrossel que veio de Guimarães para a Póvoa, primeiro pessoas abastadas, com fábricas, depois os operários. As pessoas de Guimarães gostam da Póvoa, e a Póvoa cresceu com a chegada dos vimaranenses e das pessoas do Vale do Ave em geral. Dessa ligação hoje já temos filhos de Guimarães e da Póvoa, gente cá enraizada e netos a habituarem-se a isto”, suspira.
O sargaço, o casino e o vento. A língua da sogra, os passeios à beira-mar e a Bola de Nívea. Os encantos da Póvoa de Varzim continuam a atrair os vimaranenses, que ao longo de várias décadas fortalecem a conexão. Porque a água gelada, ao invés de arrefecer, atrai; e o mar sinuoso que às vezes aparenta ser pouco amigo também sabe ser afetuoso. Só custa molhar um bocadinho, depois a ligação está lá. Sempre esteve.