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Nicolinas e questões de género

Amaro das Neves
Opinião \ sexta-feira, novembro 17, 2023
© Direitos reservados
Nos tempos que correm, o nó da questão coloca-se na discussão sobre o direito de as estudantes integrarem a Comissão organizadora das festas. O que resolveria a sua ausência em números como as Posses.

Aí estão as Festas Nicolinas.

As origens das celebrações dos estudantes de Guimarães ao seu padroeiro, S. Nicolau, perdem-se, literalmente, no tempo. Até hoje, não foi possível demonstrar quando se iniciaram. Apontam-se diferentes hipóteses, umas mais verosímeis do que as outras. De seguro, apenas temos que já aconteciam em Guimarães no séc. XVII e que na segunda década do séc. XIX já tinham um formato próximo do que chegou aos nossos dias. É provável que as suas primeiras manifestações tenham acontecido no final da Idade Média, à imagem do que sucedeu noutras regiões da Europa.

Regressam as festas e, com elas, velhas discussões. Uma delas está hoje sob o foco, por força do debate em torno das questões de género: as Nicolinas são dos estudantes ou são dos rapazes estudantes?

Para que não fiquem dúvidas quanto ao que penso, registo que, por princípio, nada tenho contra tradições em que haja uma clara distinção de papéis ou mesmo exclusões determinadas pelo género. E, já agora, anoto que a UNESCO também não tem: na já longa lista do Património Cultural Imaterial da Humanidade (onde, vá-se lá perceber porquê, as Festas Nicolinas ainda não constam), não faltam as que envolvem a distinção de género, com participantes exclusivamente do sexo masculino ou feminino (assim como abundantes libações alcoólicas, mas esse é outro debate). São tradições que têm origem nos papéis sociais tradicionais e que corporizam manifestações de diversidade cultural, que a UNESCO não tem problemas em reconhecer e valorizar.

De onde vem a ideia, que até já vi mulheres defenderem, de que as Nicolinas são exclusivas dos moços estudantes? A resposta a esta questão, que é simples, permite reposicionar a discussão.

Durante séculos, as escolas foram frequentadas apenas por rapazes. Eram tempos em que as mulheres viviam sob tutela masculina, em estado de permanente menoridade e em confinamento doméstico. A educação formal estava-lhes vedada, já que o seu destino seria tratar da casa, cuidar dos filhos e atender o marido. Sendo as festas a S. Nicolau exclusivas dos estudantes — sempre atentos às intrusões dos “futricas” (os não-estudantes) —, impediam a participação de raparigas, não por serem raparigas, mas porque a sua exclusão do acesso à escola não lhes permitia serem estudantes.

Com a abolição das restrições de género no acesso à escola, as raparigas também adquiriram o direito a participar nas Nicolinas. Mas tiveram que lutar por ele.

Com o tempo, as festas a S. Nicolau tinham sido apropriadas pelos estudantes de uma escola de Guimarães fundada em 6 de Setembro de 1896 — o Seminário-Liceu, depois Liceu de Guimarães —, numa altura em que as celebrações já levavam mais de dois séculos, pelo menos. Reverter esta apropriação não foi fácil. Viria a concretizar-se na década de 1980, em resultado da luta dos estudantes das escolas secundárias Francisco de Holanda e da Veiga (hoje Santos Simões). Por aqueles anos, a reivindicação do direito das estudantes a participarem nas Nicolinas ganhou força. Recordo-me das reações às primeiras tentativas de participação no cortejo do Pinheiro por parte de antigas alunas do velho Liceu: tiveram de enfrentar a oposição violenta, física e verbal, de muitos dos “velhos”. Nos tempos que correm, apesar de persistirem opiniões em contraciclo, a participação de raparigas nas Festas Nicolinas é um direito consolidado.

Registo que as polémicas à volta do papel das estudantes nas Maçãzinhas não me parecem ter grande justificação. Tratando-se de uma evocação alegórica, com tiques de marialvismo, do “namoro à moda antiga”, a sua continuidade só se perceberá se for assumida como uma representação, na qual as raparigas ficam à janela, à espera dos príncipes encantados, que virão montados a cavalo oferecer-lhes a “maçã da tentação” que trazem espetada na lança. A alternativa será acabar com o número das Maçãzinhas, ideia que não terá muitos defensores.

Nos tempos que correm, o nó da questão coloca-se na discussão sobre o direito de as estudantes integrarem a Comissão organizadora das festas. O que, além do mais, resolveria a sua ausência em alguns dos números do seu calendário, como as Posses.

Sou capaz de perceber a resistência à mudança, mas não conheço nenhum impedimento a que qualquer estudante de Guimarães se possa candidatar a um cargo na Comissão. O género não o será, seguramente.

A prova dos nove acontecerá no dia em que a primeira estudante se candidatar.

Já faltou mais, acredito.

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