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Afonso cabisbaixo

Amaro das Neves
Opinião \ segunda-feira, maio 15, 2023
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Se não me inquieta a natureza intencionalmente rude e inacabada da obra, e se considero que a escolha do granito da terra faz todo o sentido, já não compreendo o implante granito de Angola na cabeça.

A controvérsia acerca da estátua de Afonso Henriques oferecida a Zamora e os anúncios de esculturas comemorativas a implantar em ruas e praças de Guimarães impõe que se discutam os critérios e as práticas para a encomenda de arte pública. E, neste campo, Guimarães só tem de se rever no processo que levou ao levantamento do monumento a Afonso Henriques.

Os vimaranenses deviam um monumento a D. Afonso Henriques. Em 1882, decidem erigi-lo. Fazem uma subscrição pública, que contou com a generosidade da comunidade vimaranense no Brasil, mas que não foi suficiente para a estátua equestre sonhada. Afastou-se a ideia de escolher o escultor por concurso público, entregando-se a obra “ao talento e à honestidade do laureado estatuário portuense Soares dos Reis” e ao arquiteto José António Gaspar, das Belas Artes de Lisboa, que desenharia o pedestal. O trabalho pressupôs um aturado labor de pesquisa sobre os trajos e os equipamentos dos guerreiros medievais, de que resultou uma proposta em que Afonso Henriques aparecia com uma cota de malha que terminava acima do joelho e com um capacete cónico. A discussão pública determinou a solução final, em que o rei enverga um lourigão recoberto de placas redondas a cair até aos pés e um elmo à normanda, com protetor nasal fixo. Como de Afonso Henriques se desconhecia a vera efígie, a obra de Soares dos Reis fixou para a posteridade o retrato de Afonso Henriques, resultado do estudo e da criatividade do artista, que imaginou o rosto de Afonso Henriques a partir dos relatos que descreviam, acima de tudo, o seu carácter.

António Arroio não apreciou a obra. Conta que, por estar doente, Soares dos Reis “teve de confiar grande parte do trabalho a discípulos seus que se não achavam à altura da empresa”, considerando “académico e forçado” o “movimento geral da estátua”, “apesar da vigorosa expressão da fisionomia, única parte que Soares, ao que nos dizem, pôde modelar diretamente”.

Confesso que da estátua que pretende representar Afonso Henriques imberbe, ao tempo em que se terá armado cavaleiro, pelas suas mãos, na catedral de Zamora, apenas conheço fotografias. Dela aqui não faço juízo estético ou de técnica escultórica. Apenas direi que, tal como a vejo, falha onde Soares dos Reis, segundo Arroio, acertou — “a vigorosa expressão da fisionomia”, que se expressa naquele olhar firme e penetrante que, encarando o horizonte, aponta o caminho a seguir.

O que vemos na estátua de Zamora é um semblante inexpressivo e cabisbaixo, que contrasta com a imagem de irreverência e insubmissão que se associa à personalidade do jovem príncipe que, pelo ato em que se arma cavaleiro, recusa reconhecer um poder terreno superior ao que reivindica para si. Aquela figura pode representar qualquer um, mas não Afonso Henriques tal como o julgamos conhecer — e mais facilmente representaria um filho de Egas Moniz do que o filho de Teresa. Bastava substituir a espada pela corda ao pescoço.

Se não me inquieta a natureza intencionalmente rude e inacabada da obra — que pode simbolizar tanto a idade de Afonso Henriques, como a ideia de um país que ainda não o era —, e se considero que a escolha do granito da terra faz todo o sentido, já não compreendo o implante granito de Angola na cabeça. Além do mais, parece afirmar que Afonso Henriques teria cabelo preto, o que não sabemos (há fontes, mas nenhuma coeva, que afirmam que era castanho ou louro). O mesmo direi da pedra lioz da base, que se assume como homenagem a Soares dos Reis, por ter sido o material utilizado no pedestal original. Basta um olhar para uma fotografia do pedestal, hoje desaparecido, para se perceber que não é de pedra lioz. O projeto apresentado por Soares dos Reis previa que a base pudesse ser de pedra lioz ou de vidraço brunido de Pero Pinheiro (assim como previa que a estátua fosse de bronze ou de mármore de Carrara). O que se concretizou é recorrentemente descrito como sendo de mármore branco. Poderia ser de vidraço (a pedra de calcário que se usa na calçada portuguesa), mas não era, seguramente, de pedra lioz.

Prometo voltar à discussão sobre a encomenda de arte pública.

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