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As pedras de Guimarães

Vítor Oliveira
Opinião \ sábado, outubro 02, 2021
© Direitos reservados
Contribuir para o bem comum é desempenharmos bem o trabalho que nos corresponde, seja ele qual for.

Guimarães tem sabido cuidar do seu património e, ao longo dos séculos, as suas gerações pugnam por apresentar ao mundo uma cidade que reflita, no futuro, todo um passado e toda uma memória. A edição de estudos sobre os três monumentos nacionais que se situam no Monte Latito (Castelo, Paço dos Duques e Igreja S. Miguel) é um contributo valioso para saber quem fomos e o que queremos ser.

Com a publicação do segundo dos três livros da família de monumentos, percebe-se por que razão uma pedra esteve em determinado sítio e por que motivo deixou de estar, em algum momento, na “Acrópole de Guimarães” – como apelidou o prestigiado Luís Carlos Amaral, na sua apresentação.

À investigação detalhada sobre o Castelo, segue-se agora a publicação da obra acerca da Igreja de S. Miguel do Castelo, da autoria de Isabel Maria Fernandes, uma edição da Associação dos Amigos dos Paço dos Duques de Bragança e Castelo de Guimarães, com o apoio do Município.

Ao longo dos séculos, a Igreja de S. Miguel, também consagrada a Santa Margarida, conheceu uma evolução que acompanhou a gesta de quem nos antecedeu. E percebe-se claramente que a vida é feita de ciclos, de polos que alternam e que têm a sua centralidade própria em função dos tempos.

Com um chão polvilhado por pedras tumulares, esta construção tipicamente românica, construída de granito, com planta retangular, de uma só nave, sem grandes atavios decorativos e com teto em madeira, seguiu um modelo semelhante ao de muitos templos do seu período.

Em 1370, era “dentro, na vila do Castelo, sob o alpendre de Santa Margarida, que se faziam as audiências concelhias”. A igreja e o seu alpendre constituíam-se, pois, como um polo de reunião também para assuntos de administração e sociabilidade, com uma particularidade: a sua envolvente era utilizada para estender a roupa a secar! No século XIV, um dos polos nucleares de Guimarães era ali...

O asseio da igreja, a pia batismal, as diferentes intervenções realizadas, o altar-mor, o coro que terá existido, mereciam rasgados elogios nas visitas dos Arcebispos. Em 1721, deu-se uma tentativa de construir casas em redor da Igreja de S. Miguel. Contudo, uma declaração do Arcebispo D. Rodrigo de Moura Teles foi elucidativa: “Contra decência e veneração que se deve ter àquele lugar, ordenamos que as ditas casas não se levantem, sob pena de se demolirem à custa das pessoas que as mandarem fazer”. E nem pedra se levantou…

Anos passaram e a evolução do tempo transformou, também, a Igreja. O campanário desabou (1872), verificaram-se infiltrações e o templo atingiu um elevado estado de ruína, só ultrapassado por uma bem-sucedida subscrição pública junto dos vimaranenses, que permitiu efetuar o devido restauro. Francisco Martins Sarmento tomou a iniciativa e restabeleceu, no seu primitivo estilo, a antiga igreja histórica de S. Miguel do Castelo.

Na requalificação do templo, que durou entre 1874 e 1877, foram suprimidos os altares laterais e substituído o arco cruzeiro, conservando a sua antiga simplicidade e pureza de estilo, exemplo muito raro nas construções dos edifícios antigos. Em 1910, a nossa Igreja de S. Miguel era classificada como Monumento Nacional.

Do renascimento aos tempos modernos

Em 1927, verifica-se mais um grande (e decisivo) restauro. A sacristia, que existia desde pelo menos a 2ª metade do século XVI, é demolida, mantendo-se, no entanto, na parede nascente da capela-mor, a porta que lhe dava acesso, bem como um postigo. Também no ano de 1927, a pia batismal, que tinha sido levada, em 1664, pelo prior D. Diogo Lobo da Silveira para a Igreja da Oliveira, volta ao seu local de origem. E regressa exatamente pelo mesmo motivo pelo qual tinha sido levada: valorizar a pia batismal na qual se acreditava ter sido batizado o nosso Primeiro Rei, D. Afonso Henriques.

Entre 1936 e 1940, é efetuado novo restauro. Rebaixou-se e lajeou-se o pavimento da capela-mor, reconstruiu-se o telhado, entaipou-se uma porta e duas janelas e alindou-se o espaço exterior em redor do monumento. Com a reconstrução da Igreja de S. Dâmaso, o culto religioso passou a ser lá realizado e a Igreja de S. Miguel constituiu-se como elemento de interesse arquitetónico, além de ser palco de eventos festivos e culturais, como sucede anualmente em agosto, com a missa solene em louvor da Padroeira de Guimarães.

No interior do monumento, são ainda visíveis dez das doze cruzes com que se sagrava uma Igreja. Algumas ainda mantêm vestígios de pintura com as cores vermelha e amarela. As imagens de S. Miguel e Santa Margarida, que fazem parte do acervo da Igreja de S. Miguel, juntam-se a uma lápide de granito em honra da Imaculada Conceição, de que a cidade de Guimarães ainda conserva três das várias que terão existido nas diversas entradas da urbe.

Ainda neste mês de outubro, a Igreja de S. Miguel terá um novo motivo de visita. Será colocada uma réplica da escultura de S. Miguel (a original está no Museu de Alberto Sampaio), que regressa a uma casa onde permaneceu durante muito tempo, mas agora com uma especificidade singular: pessoas invisuais e crianças vão poder tocar e sentir a peça! A reconstituição da escultura em 3D, bem como o revestimento por uma camada cromática, permitirá sentir a textura do cabelo de S. Miguel ou tatear a balança onde pesava as almas, introduzindo-se assim inovação, tecnologia e contemporaneidade a um dos locais medievais mais visitados em Guimarães.

E assim se inaugura um novo capítulo na cronologia da Igreja de S. Miguel, que alimenta memórias e produz memórias futuras para gerações vindouras. Afinal, um território será tão mais competitivo e atrativo quanto for capaz de ler, entender e fortalecer as suas potencialidades…

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