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Contar histórias sobre o medo e a violência: The Pillowman na Mostra de Teatro de Amadores

Francesca Rayner
Opinião \ sábado, outubro 23, 2021
© Direitos reservados
Acho importante que peças exigentes como estas façam parte do repertório do teatro amador porque esta exigência também permite uma evolução no teatro amador ao nível textual e de cena.

A imagem que a maioria das pessoas tem do teatro amador é de um teatro de emoções positivas, festivo e de comunidade. Neste sentido, The Pillowman (O Homem Almofada, 2003), encenado pelo Teatro de Ensaio Raúl Brandão no Pequena Auditório do CCVF no passado dia 22 de Outubro no âmbito da Mostra de Teatro de Amadora quebra deliberada e claramente este molde. A peça foi escrita pelo irlandês Martin McDonagh, mais conhecido pelos guiões de cinema para filmes como Three Billboards Outside Ebbing, Missouri (Três Cartazes à Beira da Estrada, 2017) mas que começou a sua carreira como dramaturgo de palco. Em Portugal, a peça foi traduzida e encenada por Tiago Guedes no Teatro Maria Matos em 2007 e contou com os atores Gonçalo Washington, Nuno Lopes e João Pedro Vaz.

Faz todo o sentido voltar a encenar esta peça em 2021 com os regimes autoritários a crescer e acentuadamente mais violentos, seja em Myanmar, Hong Kong ou Afeganistão. É uma peça centrada na figura de Katurian, um escritor de ficção num estado sem direitos que é preso e torturado quando as suas histórias parecem ter demasiadas semelhanças com uma série de assassinatos de crianças. Os temas da peça são bastante atuais: o papel do escritor e da arte num estado totalitário, as semelhanças e diferenças entre realidade e ficção e, através do irmão vulnerável de Katurian, Michal, a violência que pode existir no seio da família. É sobretudo, uma peça sobre o poder das histórias e a nossa necessidade de as contar para nos percebermos a nós próprios.

É evidente que uma peça desta natureza coloca vários desafios à encenação. Desde logo pela exigência em se estar duas horas e meia em palco e transmitir uma diversidade de emoções desde a fragilidade até ao humor negro. Nesta encenação, duas personagens masculinas são representadas por atrizes: Cidália Carvalho como um Katurian mercurial e Mara Adelaide como a torturadora ela própria torturada, Tupolski, o que sugere que os papéis de heróis imperfeitos e de torturadores oficiosos não são exclusivamente masculinos. O outro torturador, Ariel, mais espontâneo que oficioso, é representado de forma absolutamente convincente por José Dias. Tiago Costa representa Michal, numa cena simultaneamente comovente e assustador com a sua irmã Katurian, uma das cenas mais bem conseguidas deste espetáculo. A dramaturgia, encenação, sonoplastia e luminotecnia de Miguel de Riba e Rui Mário Silva é coerente e eficaz e serve bem os vários ambientes da peça, só perdendo um pouco o ritmo na última parte do espetáculo.

Acho importante que peças exigentes como estas façam parte do repertório do teatro amador porque esta exigência também permite uma evolução no teatro amador ao nível textual e de cena. As histórias contadas não são bonitas nem consensuais, mas esta capacidade de enfrentar os medos e a violência no seio da comunidade constitui um papel importante da arte, como também é sem dúvida esta valorização do contar das histórias como forma de refletir sobre os tempos em que vivemos.

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