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Cortaram-me as mãos

Amaro das Neves
Opinião \ terça-feira, outubro 04, 2022
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Com o tempo, foram rareando os artesãos que trabalhavam o ferro nas ruelas do centro urbano de Guimarães. Até que só sobrou um, Gaspar Carreira, com oficina na rua de Donães.

No tempo em que a rainha D. Isabel tratava da reedificação do mosteiro de Santa Clara de Coimbra, onde se recolheria depois de viúva, escreveu uma carta a D. Dinis, em que se subscrevia como a “vossa amadeira Isabel” e pedia urgência na obra de uma “ralete para o reso” (grade para o coro da Igreja) que o rei mandara fazer em Guimarães, “por lá jazer o mestre mais boo”. O rei respondeu-lhe numa missiva datada de Santarém, “a doze andados de julho”, de um ano que se não indica, afirmando que estava “certo que será de jeito o ralete que não haja outro tal qual ele”. O mestre ferreiro que gozava de tal prestígio na corte de Portugal chamava-se Mem Anes e terá sido, como sugere A. L. de Carvalho, o iniciador de “uma larga família de proletários, enxertados no mesmo ofício ou similares”.

De Guimarães era também o mestre ferreiro que afeiçoou a espada com que o Condestável Nuno Álvares Pereira se bateu em Aljubarrota, celebrizado na peça “O Alfageme de Santarém ou a espada do Condestável”, mas que não chamava Fernão Vaz, como Garrett lhe chamou, nem era de Santarém. Chamava-se João de Guimarães e, de onde ele era, diz o seu nome.

A tradição das artes de trabalhar o ferro em Guimarães é tão antiga quanto o velho burgo, onde havia uma rua Ferreira e uma rua da Forja. As oficinas situavam-se nos pisos térreos de casas de sobrado, aparelhados com a forja, a bigorna, o fole de couro para avivar o fogo do carvão de choça, a tina de água para temperar o ferro incandescente, a mó de esmeril para o afagar, os tornos e a parafernália das ferramentas do ferreiro — chegadeira, malhos, martelos, tenazes, ponteiros, talhadeiras, polidores. Daquelas oficinas rústicas saíam ferramentas para muitas artes e ofícios (enxadas, foices, sachos, roçadoiras, machados, martelos, torqueses, trados, verrumas, serras de mão), apetrechos domésticos (sertãs, cutelos, colheres de gancho), ferragens para a construção (dobradiças, ferrolhos, fechaduras, aldrabas, batentes, grades de ferro para portões, janelas, varandas e varandins), guarnições para mobiliário, e toda a qualidade de artefactos necessários à vida, como camas, candeeiros ou fogões. Alguns destes mestres da forja e da bigorna eram artistas especialmente dotados, que produziam obras com um refinamento inesperado, em mãos tão rudes.

Com o tempo, foram rareando os artesãos que trabalhavam o ferro nas ruelas do centro urbano de Guimarães. Até que só sobrou um. Com oficina na rua de Donães, o último guardião da tradição vimaranense de trabalhar o ferro, Gaspar Carreira, prosseguia a arte do seu avô, de quem herdou o nome e de cujas mãos saiu o portão do Claustro da Colegiada, e continuada pelo seu pai, Álvaro, que fez gradeamento que protege o cruzeiro com a lamentação de Cristo Morto, hoje conhecido como o Cruzeiro da Senhora da Guia.

Das mãos de Gaspar Carreira continuaram a sair, durante décadas, a par dos artefactos banais do quotidiano, as encomendas mais exigentes de arquitetos e empreiteiros. E, numa vida paralela, concebeu e deu forma a uma surpreendente obra de escultura. Fez em ferro aquilo que outros moldavam em barro: figuras que saíam da sua imaginação, de feição popular, algo ingénua, com entoação satírica, muitas vezes corrosiva, quase escatológica. Deu corpo a figuras que habitam o imaginário e a identidade vimaranenses, como Afonso Henriques, Mumadona, a Senhora da Oliveira ou D. João I, mas também a vultos da cultura nacional, como Camões, Pessoa ou Saramago. E, como o alfageme do Condestável, também fez espadas.

Quando o Centro Histórico de Guimarães, na sequência do exemplar processo de reabilitação de que foi laboratório e beneficiário, começou a atrair as atenções do mundo, com a posterior elevação a Património Mundial e a consagração da cidade como Capital Europeia da Cultura, o rosto do mestre Gaspar Carreira tornou-se numa das imagens de marca de Guimarães e a sua oficina passou a integrar o roteiro dos locais turísticos de visita obrigatória na cidade.

Em meados de novembro de 2018, o último ferreiro de Guimarães teve de abandonar as paredes encrostadas de negro de fumo de três gerações da velha oficina familiar. A partilha da herança dos seus pais obrigou a que a casa fosse vendida. Gaspar Carreira perdeu o seu local de trabalho. Fechou a porta carregado de memórias e de lágrimas nos olhos. Partia, mas levava o bichinho lá dentro. E uma remota esperança em promessas já antigas, que nem seriam difíceis de cumprir, até porque seria do interesse da cidade que continuasse a sua arte e a ensinasse a quem a quisesse aprender, para que não se perdesse.

Mais um nome, este um pouco menos anónimo, a juntar à já longa lista de danos colaterais do imparável processo de gentrificação que está a mudar o modo de vida do burgo que Mumadona fundou.

No dia em que escrevo esta crónica, encontrei o Senhor Carreira em frente à loja do Júlio, junto à rua de Donães.

Perguntei-lhe como iam as coisas.

Respondeu-me com os olhos carregados de tristeza:

“Cortaram-me as mãos.”

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