Desporto com lugar e tempo de igualdade e de liberdade (continuação)
A violência, não entre os atletas, mas os adeptos, e de sobremaneira as claques, é, hodiernamente, um fenómeno que depaupera o desporto, e em particular o futebol. E o futebol português, não com originalidade, mas com a prontidão com que sabe imitar a violência que recebe de outras paragens europeias (como Itália, Inglaterra, Polónia e de outros países do leste europeu, destacando-se a Croácia) e que não raras vezes supera estes modelos de tristes figuras. Contudo, o Euro-2004 foi aproveitado pelas autoridades portuguesas para evoluir nas técnicas de combate à violência no desporto e na recolha de informação sobre adeptos violentos e perigosos. Por outro lado, os novos estádios trouxeram tecnologias modernas (como as CCTV) e foram criadas as Unidades Metropolitanas de Informação Desportiva e o Ponto Nacional de Informações sobre Futebol, tuteladas pela PSP. Tal permitiu a identificação de adeptos perigoso e violentos, o uso mais frequente do cassetete pelas forças policiais, bem como a criação dos Grupos Organizados de Adeptos. O acompanhamento policial, antes, durante e depois dos jogos (o que as áreas de serviço agradecem), e outros momentos e situações que escapam ao próprio fenómeno desportivo, ou que ainda escapam, infelizmente. Ou mesmo as dissidências nas claques e a criação de novas, cada vez mais radicais (não raramente ligadas a movimentos políticos extremistas). Porém, um criminoso não se faz numa claque, quando lá chega já o é, mesmo que muitos se tornem tais (como cães de fila) no interior das mesmas. Pois estas, como na Revista E do Expresso, de 27 de maio de 2017, uma fonte policial pronunciava sem medo: “O crime esteve sempre associado às claques, e nós sabemos que por ali passam muitos episódios de espancamento, crime organizado, tráfico de armas, drogas e mulheres” (p. 39).
Como não recordar o ódio de 1996, final da taça de Portugal entre Sporting e Benfica, ou melhor, entre o No Name Boys do Benfica e a Juve Leo do Sporting, onde um very light lançado por Hugo Inácio, filiado na claque benfiquista, que sobrevoou o estádio do Jamor e atingiu mortalmente o sportinguista Rui Mendes. Ou a madrugada de 22 de abril de 2017, junto à rotunda do Cosme Damião, estádio da Luz, encontra-se estendido um corpo inanimado de um italiano, consequência de uma luta entre a Juve Leo e os No Name Boys, de nome Marco Ficini, de 41 anos. Mas o que faz um italiano numa luta de claques rivais de Lisboa?! Tudo terá começado por uma provocação de benfiquistas junto da sede da Juve Leo, no preciso momento em que a claque sportinguista era visitada por três italianos em nome da amizade que une a claque Juve Leo à claque 7 Bello da Fiorentina. Quiseram participar com a Juve Leo na resposta à provocação e os 20 casuals da claque, mas independentes destes, e pela 1h da madrugada deu-se o confronto e a desgraça aconteceu – Ficini foi atropelado, primeiramente porque estava em fuga o adepto benfiquista, mas outros afirmam que foi propositadamente. Só a 27 de abril entregou-se às autoridades e foi constituído arguido, sujeito a prisão perpétua e acusado por cinco crimes de homicídio. Algo de novo está a surgir, enquanto alguns persistem no erro generalista de que sempre houve violência.
Este caso do adepto ultra do Florentina revela uma mudança de paradigma na violência entre as claques. Se antes a maioria dos confrontos aconteciam no dia de jogo, quer no caminho para o estádio, quer nas bancadas, mas (e parece um contrassenso) o controlo policial mais apertado germinou uma maior criatividade entre os ultras dos clubes: encontrar, e mesmo copiar, outras formas de confronto. As rixas e os desacatos, verdadeiras lutas campais, acontecem em lugares distantes dos estádios e de outros recintos desportivos, não raras vezes, fazendo quilómetros para os “acertos de contas”. E mais, fazendo-o segundo um “código de honra” – um ultra luta pelo seu próprio clube, mão por outro; um ultra não usa facas, bastões, soqueiras ou carros, se tem de lutar, fá-lo à homem, com os punhos; um ultra não bate quando o adversário está no chão, ou quando está ferido; um ultra nunca mata, e muito menos um outro ultra. Já os casuals, mais ligada ao hooliganismo inglês, ou os ventos violentos que sopram de Moscovo e da Budapeste, trazem novos rostos e métodos de luta ao desporto, e, em particular, ao futebol. Bem como a ligação das claques a movimentos extremistas, de esquerda, mas sobretudo de direita. A Juve Leo, e a sua ligação ao movimento fascista e racista, Grupo 1143, foram dirigidos por um extremista de direita, mesmo nazi, de nome Mário Machado. A violência, das mais diversas índoles, é a sua única argumentação, onde o encontro, combinado pelos mais diversos meios, em vez de ser uma partilha é uma atitude de segregação e de crueldade.
Estes encontros são combinados nas redes sociais, ou contactos personalizados entre a chefias das claques (embora muitos digam que não concordam com isso, e até percebo e aceito que formalmente seja assim, porém o silêncio é sempre uma aprovação tácita), onde estas novas práticas das unidades mais musculadas e mais motivados para a violência física, realizam em descampados, bairros, praias, estacionamentos, discotecas, etc. E também se sabe que são recrutados os miúdos, preferencialmente, nos bairros sociais, pelos 11 anos, muitas vezes iniciados pelos pais, em casas ou lugares alugados para que se treinem em brigas com os mais velhos. Artes marciais, MMA, free fight e treinam em ginásios, e outras modalidades que os preparam para as lutas que a qualquer altura podem acontecer. Autênticas orgias de violência que ofuscam a cor e o som que acrescentam ao espetáculo desportivo. O que oferecem aos seus filiados as claques e os grupos ultra é aquilo que a sociedade lhes nega, ou seja, auto-estima e uma sociedade de amigos que estão para os bons e maus momentos, como se fosse uma nova família. Um lugar e um tempo de convívio com os grandes ideais de tudo pelo clube e pelas nossas cores, de fraternidade e de companheirismo, que se vivencia nas viagens e nos encontros de acerto de contas, e na exclusão dos outros e outras que não se identificam com eles. A violência não é a que sempre houve, mas é uma nova violência organizada e criminosa.
(Continua...)