Desporto como lugar e tempo de igualdade e de liberdade (continuação)
E se este é um fenómeno que não pode, nem deve, ser parado e que, de forma sustentada, tem de se desenvolver, eu pergunto: e a vez de as mulheres assumirem todos estes cargos de liderança no campo, na secretaria, nas instituições, etc??? Depois do Campeonato do Mundo de 2023 urge fazer o desporto das e para as mulheres, nas suas variantes modalidades, amadoras e profissionais, uma realidade. Chega de serem umas outsiders, é preciso reconhecer de iure e de facto que as mulheres são tão boas, e, porque não, em muitos casos melhores que muitos homens na prática desportiva de qualquer modalidade. Ou, reconhecer que é preciso abandonar este paradigma machista do desporto, onde são os homens a dominarem em todos os espaços do mesmo – presidentes, treinadores e praticantes, e até no comentário jornalístico são sobretudo homens (com boas exceções, atualmente, em Portugal). Antes do Mundial de 2023 dizia o treinador, Francisco Neto, da seleção das nossas mulheres futebolistas: “a felicidade delas, o lado emocional, é estarem no sítio onde se sintam confortáveis para irem treinar todos os dias com vontade para poderem melhorar, seja em Portugal ou fora” (entrevista ao Expresso a 30 de junho de 2023). Sim, as mulheres, como os homens, também se sentem felizes no Desporto, então é preciso reconhecer a mais-valia das mulheres no desporto.
Quando se realçam as virtudes da Kika e as suas apetências para o futebol desde a infância, na sua liberdade e na rua, não se pode esquecer que esta é uma virtude comum aos homens e às mulheres que gostam de desporto, seja ele qual seja. As mulheres que praticam atividade física e/ou desporto são iguais a todas as outras mulheres, só que enquanto algumas e alguns gostam de música, de pintura, de literatura, etc, outras e outros gostam de fisicamente, e com habilidade, praticar o desporto com o qual se identificam. Nada disto é diferente dos homens. Então, é preciso de deixar de olhar para as “Kikas” do desporto português quase como uma anormalidade. Mas olhar para elas como se olha para um Cristiano Ronaldo ou um João Sousa. Mas o mais grave é o salário onde, e como sempre, perdura a discriminação sobre as mulheres desportistas. E isto num tempo em que Portugal, entre 2010 e 2023, ano em que a seleção portuguesa de futebol das mulheres alcançou o 21º lugar no Ranking FIFA, as praticantes federadas de futebol e futsal, mais que duplicou, sendo em 2023 de 13.107 praticantes federadas. É esta realidade que leva, neste mesmo ano glorioso do futebol das mulheres portuguesas, Diana Silva, com 10 títulos nacionais, a partilhar as muitas dificuldades destas mulheres (hodiernamente a maioria das equipas de futebol das mulheres não são profissionais), que mesmo assim não deixavam de praticar o seu desporto preferido: “Quase não existia futebol feminino, havia imenso preconceito, mas tratou-se sempre de uma batalha das mulheres, que jogam por amor à camisola e ao futebol” (entrevista à Revista E do Expresso de 04 de agosto de 2023).
Após a derrota no Mundial de 2023, com os olhos lacrimosos, as nossas mulheres futebolistas mostraram de que fibra são feitas, e continuam a acreditar que querem inspirar as nossas mulheres a não olharem só para o nome das costas das desportistas americanas, mas a conhecerem as nossas atletas, pois querem continuar a serem protagonistas e abrirem portas para o futuro de tantas outras mulheres. Foi por isso mesmo que, a capitã Dolores Silva, apesar da hora de transmissão dos jogos, pedia aos portugueses que acordassem mais cedo só para as ver jogar. E gritaram em uníssono, competimos pelas gerações do passado, do presente e do futuro. Elas que escolheram como música inspiradora deste Mundial a canção de Mariza, o Melhor de Mim. Se muitas destas atletas cresceram no futebol sem referências, as gerações de hoje e de amanhã já terão como referências estas valentes portuguesas que adoram praticar o seu jogo preferido. Andreia Jacinto, que reconhece a profunda evolução das melhorias em diversos aspectos do desporto praticado por mulheres, em 31 de maio de 2024 (no Expresso) dizia que “quando eu tinha 10 anos, não conhecia nenhuma equipa de futebol feminino, era como se não existisse. Agora, as meninas já crescem com jogadoras como referências”. Hoje existem mais mulheres a treinarem seleções e, nomeadamente, equipas de futebol. Mas é preciso fazer as mulheres acreditarem que poderão ser capazes, como os homens, de assumirem esta missão como eles, mesmo no futebol. Mas no ano transato, e neste, tivemos eleições para federações nacionais e internacionais. Quantas foram as mulheres a concorrerem e quantas foram eleitas?! São os homens que continuam a liderar em praticamente todas as federações, e naquelas que o dinheiro mais pesa as mulheres estão praticamente ausentes. Em Portugal temos mulheres a liderarem na dança desportiva, no kempo e na petanca, no resto o domínio absoluto é dos homens. Nem na FIFA, nem na UEFA, nem no Comité Olímpico internacional ou nacional as mulheres contam. Porquê, se cada vez há mais praticantes, e mesmo federadas, no desporto nacional e internacional? Em abril de 2025 as estáticas não enganam: 36% das pessoas que trabalham no setor desportivo em Portugal são mulheres; 31,50% dos praticantes desportivos federados são mulheres; 88,20% dos federados em ginástica são mulheres; 56% dos federados em voleibol são mulheres; 7,10% dos federados em futebol são mulheres; 60,10% dos federados na patinagem são mulheres; 57, 2 mil mulheres praticam natação, é a federação com maior quantidade de federadas. Mas igualmente se constata que as mulheres abandonam mais quando vão para a universidade, bem como a maternidade e os salários baixos afastam muitas das práticas desportivas.
Finalmente, um dos atentados que mais persiste contra as mulheres é o abuso e a cultura de impunidade que lançou raízes no mundo do desporto e parece não querer abandonar o seu terrível posto. O desporto é controlado por um cartel masculino, que se faz notar na sua permanência no poder e até no nepotismo. Uma coisa de homens que insiste em continuar a lidar com este melindroso assunto com os mesmos erros de sempre – desincentivar a denúncia, desvalorizar aos casos que surgem na praça pública, procurando sempre afastar os holofotes, e nunca punindo o abusador. E no futebol, um mundo sem qualquer escrutínio e controlado por uns poucos todo-poderosos e senhores de um poder absoluto, pior ainda. O caso Rubiales em Espanha é paradigmático desta situação.
Continua
Guimarães, 23 de maio de 2025
Pe Doutor Francisco de Oliveira