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Dhimma

Orlando Coutinho
Opinião \ quarta-feira, fevereiro 14, 2024
© Direitos reservados
As “jocosas” críticas à oração de muçulmanos junto ao Castelo de Guimarães e a intimidação de praticantes daquela religião com colocação de suásticas à sua porta são merecedoras do mais solene repúdio

O sagrado e o religioso, enquanto manifestações antropológicas relevantes de uma comunidade possuem, inevitavelmente, um caráter espiritual, cultural e político aos quais não devemos fugir.

Uma declaração de interesses que não é mais que um recordatório para os leitores que me seguem: sou democrata-cristão, com publicações sobre a matéria e como tal, com um viés próprio, ao que não fujo, sobre o modelo de sociedade que defendo.

Dito isto, não podemos deixar de reconhecer que sobre o território que é hoje é Portugal (e também Espanha, com resistência asturiana) governaram Emires e Califas no então designado Al-Andaluz.

A riquíssima cultura árabe que se sobrelevou aos dias de hoje, no território que habitamos, tem marcas indeléveis na arquitetura, na língua, na música, na gastronomia na matemática e no nosso próprio “way of life”.

Guimarães que, entre os autóctones, sempre foi tida como “fraca Mãe e boa madrasta” sublinha, com este epítome, uma realidade indisfarçável: uma terra de convergência de pessoas de várias geografias, origens e culturas e que trata bem quem cá chega. Não podia deixar de ser de outro modo a uma cidade que se reivindica, por direito próprio, fundadora da nacionalidade portuguesa. Todavia, também ela “exportadora”. Não só de bens e serviços, como de pessoas para os quatro cantos do mundo e sobretudo, no período recente do “ancien regímen” nacional para o centro da Europa. Foi, por isso, com enorme surpresa que vi, ouvi e li um conjunto preocupante de manifestações que ultrapassam a razoabilidade de uma terra que vê partir e chegar muita gente.  As “jocosas” críticas à oração de muçulmanos junto ao Castelo de Guimarães e mais tarde a intimidação de praticantes daquela religião com colocação de suásticas à sua porta são merecedoras do mais solene repúdio por aqueles que se dizem democratas ou pessoas que professam uma fé.

Vi pessoas ligadas ao futebol local – olvidando que o VSC nasceu preto e branco exatamente para mostrar o seu propósito integrador de todas as diferenças, raças e credos – a embarcarem no caldo intolerante. Os mesmos que ao domingo gritam golos de jogadores que professam o Islão; os mesmos que organizam marchas proclamatórias de que “não somos racistas”; os mesmos que criticam o ostracismo desportivo a que estamos votados. Que coerência, Santo Deus!

Se é certo que a alguma ignorância será necessária formação e informação, outros há que promovendo a intolerância, a xenofobia e o racismo de forma desbragada alimentam o fundamentalismo islamofóbico, a desconfiança e a “Expulsão do Outro”, ao jeito do que ensaiava Byung-Chul Han e tão aconchegante para o patrocínio dos populismos da moda.

A Dhimma, que titula esta crónica, mais não era que a lei que protegia as pessoas de outros credos em territórios governados por muçulmanos. E era aplicada, pelos Mouros, no território que hoje é nosso. Mais tarde o Império Otomano viu consolidado o designado millet considerando “nações” todos os grupos religiosos minoritários que detinham uma certa capacidade de auto-governação. Bem certo é que com muitas imperfeições como sustentou o islamólogo Meir M. Bar- Asher. Mas não teremos nós, democratas, habitantes num Estado laico, cuja maioria da população que é cristã ocupa o espaço público, comme-il-faut, com as suas manifestações de fé (procissões, missas campais, Jornadas Mundiais de Juventude etc.) conceder aos demais credos os mesmos direitos? Não devemos, esbatendo preconceitos, respeitar as orações daqueles que vêm trabalhar para as nossas empresas? Que estão cá para produzir riqueza, em trabalhos que muitos dos que nasceram cá não querem? Que se encontram em situação de fragilidade, a necessitar de acolhimento e integração?!      

Pena é que os partidos políticos locais ainda não se tenham pronunciado convenientemente sobre esta matéria em termos de política geral para as transformações que estão a ocorrer de forma rápida em Guimarães, do mesmo modo que aconteceu um pouco por toda a Europa. As tímidas mensagens foram para dizer o óbvio, para repudiar o intolerável num Estado de Direito democrático. Mas exige-se mais e talvez por via do debate dada a evidente ausência de pensamento crítico possa ser uma via para colocarmos o assunto com a grávitas que merece. Sou por isso a louvar e a participar, moderando, uma Conferência promovida pela ASMAV no próximo sábado pelas 17h na Rua Gil Vicente que contará com os contributos de Sílvia Lemos da Comissão Justiça e Paz da Igreja Católica, Fabrizio Boscaglia especialista em cultura e esoterismo Islâmico, Francisco Teixeira professor de Filosofia e Paula Oliveira Vereadora do Município, também ela licenciada e Pós-Graduada em Ciências Religiosas e que no conjunto, tratarão do tema.  

O pluralismo religioso num mundo cada vez mais globalizado é um assunto importante; sobretudo nas comunidades locais em transformação. Guimarães, pioneira no país, não pode ser a última a tratar de matérias tão relevantes para a nossa vida coletiva. Apareçam!

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