Hiroshima: 80 Anos da Desumanidade Nuclear
No dia 6 de agosto de 1945, pelas 8h15 da manhã, o céu de Hiroshima foi rasgado por um avião norte-americano B-29 Superfortress, batizado de Enola Gay. A bordo, uma bomba atómica apelidada de Little Boy, contendo cerca de 64 kg de urânio-235. Em segundos, a cidade transformou-se num inferno radioativo: mais de 70 mil pessoas morreram instantaneamente. Até ao final daquele ano, o número de mortos ultrapassava os 140 mil, a maioria civis. Três dias depois, em Nagasaki, uma segunda bomba, Fat Man, mataria mais de 80 mil pessoas.
Hoje, 6 de agosto de 2025, assinalam-se os 80 anos do primeiro ataque nuclear da história da humanidade, um momento que deveria continuar a envergonhar-nos enquanto espécie.
Apesar da narrativa construída pelos Estados Unidos da América, que justificaram a ofensiva como uma medida para acelerar o fim da Segunda Guerra Mundial e "salvar vidas", muitos historiadores e antigos responsáveis militares norte-americanos contestam essa versão. Aliás, o almirante William Leahy, conselheiro militar do presidente Truman, afirmou que “o uso dessa arma bárbara em Hiroshima e Nagasaki nada trouxe em termos de ajuda à guerra contra o Japão.” Segundo ele, o Japão já estava derrotado e pronto para se render.
Mais ainda, documentos desclassificados nos anos seguintes revelaram que o governo dos EUA sabia que o Japão procurava uma saída da guerra, sobretudo com garantias de manutenção do imperador. Ainda assim, a decisão foi tomada. Porquê? Vários académicos apontam uma razão geopolítica: enviar uma mensagem clara à então União Soviética, em pleno início da Guerra Fria. Ou seja, o horror em Hiroshima não foi apenas um ato de guerra, foi um espetáculo de poder.
Por outro lado, é crucial lembrar que, entre as vítimas, cerca de 20.000 eram coreanos, muitos deles trabalhadores forçados sob o domínio colonial japonês. O colonialismo, o racismo e a lógica imperial intersectam-se neste episódio com consequências devastadoras e negligenciadas. E, estas vidas, duplamente esquecidas, continuam sem reconhecimento oficial ou qualquer forma de indemnização.
O total de mortos entre Hiroshima e Nagasaki ultrapassa as 250.000 pessoas. Só em civis, o número é mais do dobro dos soldados americanos mortos durante toda a guerra no Pacífico. É esta desproporcionalidade brutal que deve ser constantemente sublinhada quando se fala da "necessidade" do uso da bomba.
Passaram-se oito décadas e os fantasmas de Hiroshima continuam vivos nas histórias dos hibakusha, os sobreviventes, que carregam nos seus corpos e memórias os efeitos da radiação, da perda, da desumanização. E, no entanto, nenhum responsável político ou militar foi alguma vez julgado por este crime. Nenhuma indemnização foi paga às vítimas. Nenhuma reparação, simbólica ou concreta, foi oferecida.
O Enola Gay está hoje em exposição num museu nos Estados Unidos. Visto por muitos como um marco do poderio tecnológico americano, poucos se lembram que aquele avião transportava consigo o princípio da destruição absoluta e da banalização do mal.
Num mundo onde a ameaça nuclear ainda paira, com arsenais prontos a serem usados, importa fazer da memória uma ferramenta de resistência. Como disse o escritor japonês Kenzaburō Ōe, Nobel da Literatura, “Hiroshima é a consciência do Japão, e também deveria ser a consciência do mundo.”
80 anos depois desta barbárie, mais do que flores e discursos, exigem-se ações concretas contra a proliferação nuclear, pela justiça às vítimas, e por uma nova ética global assente na dignidade humana.
Porque se quem desenvolveu a bomba soubesse que a fórmula seria um dia usada contra si, talvez percebesse que não pode haver vitória onde se perde a humanidade.