Ladrões de bicicletas
Andei à procura do “estado da arte” da mobilidade ciclável. O motivo dessa resolução foi a apresentação pública do estudo prévio de requalificação da Avenida D. João IV, e o que encontrei gerou em mim um sentimento agridoce. Uma doce esperança vinda da Europa que foi amargando com a aproximação da lente à realidade local.
Da Europa chegam excelentes novidades. A mais recente é a Comunicação da Comissão com uma proposta de Declaração Europeia para a Prática da Bicicleta. Ao reconhecer os abrangentes benefícios do uso da bicicleta e o seu enorme potencial sustentável, inclusivo, acessível e saudável, a Declaração estabelece um conjunto de princípios e compromissos que pretendem elevar a mobilidade ciclável a prioridade estratégica na política europeia de mobilidade. Esta proposta da Comissão surge de uma posição largamente maioritária do Parlamento Europeu de Fevereiro deste ano, altura em que também foi sugerido que 2024 fosse o Ano Europeu da Bicicleta.
Focando a lente no panorama nacional podemos verificar que Portugal possui uma Estratégia Nacional para a Mobilidade Ativa Ciclável 2020-2030 (ENMAC-2030) com metas e medidas ambiciosas, mas com execução e resultados muito aquém do que foi planeado. Como ficou bem patente nos Censos de 2021, o registo da quota modal de viagens em bicicleta está muito longe das metas estabelecidas para 2025, que são de 3% em território nacional e de 4% nas cidades. Apesar da ENMAC-2030, Portugal tem dos piores desempenhos entre os estados membros da União Europeia em termos de investimento central por habitante em mobilidade ciclável, e foi dos poucos que não dedicou verba específica no PRR para as infraestruturas cicláveis (ao contrário das rodoviárias).
Olhando agora para o território de Guimarães, temos o Plano de Mobilidade Urbana Sustentável (PMUS) como referência estratégica para a “cidade ciclável”, mas também este se tem revelado como pouco mais que um adereço e ineficaz para o cumprimento das metas. Apesar de lá estar programada uma rede ciclável, o investimento em infraestruturas tem sido fragmentado, desvirtuado e muitas das vezes inútil. Já foram gastos mais de 5 milhões de euros sem qualquer incremento substancial em termos de facilidades e segurança para quem quer usar a bicicleta como forma diária de se deslocar. Note-se que a ENMAC-2030 tem como meta que em contexto citadino 1 em cada 25 deslocações diárias para a escola ou trabalho seja feita em bicicleta, mas que em Guimarães o rácio atual é de 1 em cada 455 deslocações.
O PMUS anuncia um planeamento de mobilidade de 3ª geração, assente no peão e no ciclista, mas ainda assim, a proposta de requalificação da Avenida D. João IV não lhes dá qualquer primazia, colocando-os até em conflito pela partilha de espaço. A premissa basilar para o desenho da proposta foi “não retirar estacionamento”!
Esta discrepância, entre a estratégia anunciada e a execução prática das políticas públicas de mobilidade ciclável, que ocorre aos vários níveis de governação e em praticamente todo o território nacional, é uma óbvia hipocrisia, que de tão recorrente se vai impondo, perigosamente, como admissível e até natural.
No meu entender, esta prática constitui um autêntico roubo! Um roubo de tempo, de sonhos e de oportunidades.
No belo e dramático clássico do cinema mundial “Ladrões de Bicicletas”, a esperança de António é frustrada por uma quadrilha de ladrões que lhe rouba a bicicleta. Inspirado no filme, este texto sou eu a gritar “al ladro, al ladro!”, num alerta e pedido de ajuda para impedir o roubo.