Mumadona, não Vímara Peres
Ouvimos dizer que os vimaranenses se orgulham da história da sua cidade, mas sabemos que, muitas vezes, a conhecem mal, porque anda mal contada e, aqui e ali, embrulhada em narrativas que brotam mais da imaginação do que do conhecimento histórico.
Para o perceber, basta dar um pouco de atenção à informação que é passada aos que visitam a cidade. Mostram-lhes o singular alpendre gótico com o seu belíssimo cruzeiro, que teria sido mandado erguer em memória da Batalha do Salado, por D. Afonso IV, rei insuspeito de afeição por esta Guimarães que lhe resistiu e se manteve fiel a D. Dinis, seu pai, em tempo da guerra civil. Na verdade, o Padrão da Oliveira foi mandado erguer por um comerciante vimaranense radicado em Lisboa, por devoção a Santa Maria e gratidão à terra onde nasceu.
No outro lado da Praça Maior, a que teimam chamar largo, apontam a estátua do guerreiro de lança e armadura que simboliza Guimarães e contam uma história pitoresca e fantasiosa — Alfredo Pimenta chamou-lhe história da carochinha — que a relaciona com a conquista de Ceuta e a servidão da vassoura a que estariam sujeitos os vereadores de Barcelos. É certo que a servidão existiu, mas obrigava os moradores de duas freguesias, Cunha e Ruilhe, hoje do concelho de Braga, mas que antes, bem antes da tomada de Ceuta, pertenciam a Guimarães — e não a Barcelos, que supostamente as teria entregue a Guimarães para se livrar da ignominiosa sujeição.
Junto ao castelo, recontam a história da batalha fundadora de 1128 e, apontando para o vasto terreiro que se estende até à igreja de S. Dâmaso, dizem que foi ali que o recontro se travou, dando como o prova o nome do lugar, Campo de S. Mamede, omitindo que só se chama assim por decisão camarária de 1943 e que a batalha foi noutro sítio.
E, no momento de discorrer sobre o nascimento de Guimarães, informam que foi criação de um bisavô de Mumadona chamado Vímara Peres que, depois de consumada façanha que o notabilizou, a presúria do Porto, aqui se instalou e viveu até ao dia da sua morte. Porém, não está demonstrado que Vímara Peres fosse senhor das terras de Vimaranes, que aqui tivesse vivido e morrido, que desse o nome a Guimarães ou que Mumadona fosse sua bisneta. Antes pelo contrário.
A associação de Vímara Peres a Guimarães fundamenta-se, apenas, numa verba inscrita no Livro dos Testamentos de Lorvão, que diz: era DCCCCXI uenit rex adefonsus in uama, et in VI die uimara mortuus est, o que se traduz assim: na era de 911 (ano de 873), veio o rei Afonso a Vama e, no sexto dia, Vímara morreu.
Sabendo-se que o rei é Afonso III das Astúrias e que Vímara será Vímara Peres, haveria que situar o lugar denominado Vama. Num estudo publicado em 1923, o Padre Gonzaga de Azevedo afirmou que Vama era uma abreviatura de Vimaranes, e daí se concluiu que Vímara Peres era senhor das terras de Vimaranes, onde fundou a vila, se recolheu após a presúria do Porto e terminou os seus dias.
É verdade que, anos mais tarde, o mesmo historiador corrigiu aquela leitura e não teve dúvidas em afirmar que Vímara Peres faleceu na Galiza, na localidade de Vama, situada junto do Pico Sacro, Santiago de Compostela. Mas já não foi a tempo de evitar que o equívoco criasse asas para voar. E ainda voa tão alto que lhe prometeram uma estátua em Guimarães.
Em rigor, não existe qualquer evidência de que Guimarães deva o seu nome ao presor do Porto, tendo-se por assente que Vimaranes deriva de um nome germânico, possivelmente o do seu primeiro possuidor, que poderia ter sido Vímara Peres ou outro Vímara qualquer, já que havia outros com o mesmo nome, assim como havia outros sítios chamados Vimaranes (como aquele onde foi implantado o Mosteiro de Celas, em Coimbra).
Seguindo as genealogias de cinco linhagens das famílias condais portucalenses dos séculos X e XI, fixadas pelo historiador José Mattoso, percebe-se que Mumadona Dias, da linhagem de Diogo Fernandes, de quem era filha, e que casou com o conde de Hermenegildo Gonçalves, que descendia de Ero Fernandes, não era bisneta de Vímara Peres, nem adquiriu essa condição pelo casamento.
Nada existe que ligue Vímara Peres a Guimarães, a não ser um equívoco e a coincidência do nome. Aliás, no tempo do presor do Porto, Guimarães nem sequer existia. No máximo, era uma villa de tradição romana — não uma povoação, mas uma simples propriedade rural (hoje chamar-lhe-íamos quinta).
O burgo primitivo de Guimarães nasceu oito décadas após a morte de Vímara Peres, à sombra do mosteiro que a Condessa Mumadona instituiu na sua villa de Vimaranes e do castelo que mandou erigir, alguns anos mais tarde, para o proteger. Mumadona Dias é uma mulher extraordinária que se destacou num tempo de mulheres poderosas. Ela é a fundadora de Guimarães.