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O Berço

Amaro das Neves
Opinião \ domingo, junho 18, 2023
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Ao dístico Aqui Nasceu Portugal, que está inscrito, desde a década de 1970, na única torre da antiga muralha de Guimarães que chegou aos nossos dias, também foram atribuídas diversas paternidades.

“Vi lá em baixo, entre florestas e jardins, o berço da monarquia, a faustosa cidade que teve academia de sábios, que rivaliza com as mais graduadas, em seu tempo, na capital.”

Camilo Castelo Branco, no Discurso Preliminar das Memórias do Cárcere (1862)

O nascimento de um país não se explica facilmente.

A independência nacional resulta de um processo longo e complexo, feito de aspiração, identidade, acaso, conquista, separação, negociação, reconhecimento. Como escreveu José Mattoso, “uma Nação não tem registo de nascimento: vai-se formando de forma tão lenta e progressiva, passa por tantas metamorfoses, que não é possível dizer exatamente quando nasce”. Sendo impossível, pela sua complexidade histórica, a expressão racional do processo de nascimento de uma nação, recorre-se à representação simbólica — a metáfora do berço, que associa uma personalidade (Afonso Henriques), um acontecimento histórico (a Batalha de S. Mamede), um monumento (o Castelo) e um lugar (Guimarães), que serve para explicar a constituição e o aprofundamento do sentimento de identidade nacional. Uma metáfora que se revela com a força de palavras que exprimem ideias que extravasam o seu significado literal: A Primeira Tarde Portuguesa, Aqui Nasceu Portugal, o Berço de Portugal.

A autoria da expressão A Primeira Tarde Portuguesa tem estado na origem de equívocos que temos visto frequentemente replicados. Manuel Alegre, que a descreveu como uma “belíssima expressão que podia ser um verso” — e até a incluiu num poema — equivocou-se quando afirmou que o seu autor “é Alexandre Herculano e não, como já foi escrito, o Professor José Mattoso”. Herculano nunca a empregou e Mattoso fez dela o título de uma notável conferência que proferiu em Guimarães no dia 24 de junho de 1978, mas sem deixar de a creditar àquele que a concebeu, numa nota em que remete a sua origem para um “painel da autoria de Acácio Lino, que representa a batalha de S. Mamede e se encontra no Palácio da Assembleia da República”. A Primeira Tarde Portuguesa é uma expressão cunhada para legenda de um quadro que Acácio Lino pintou em 1922.

Ao dístico Aqui Nasceu Portugal, que está inscrito, desde a década de 1970, na única torre da antiga muralha de Guimarães que chegou aos nossos dias, também foram atribuídas diversas paternidades, havendo mesmo quem sustente que foi burilado por Salazar. Não foi. O verdadeiro autor dessa expressão, que reúne os fundamentos da identidade vimaranense, é Agostinho de Campos, portuense que foi jornalista e escritor e que ainda viria ser professor de Filologia Românica nas universidades de Coimbra e de Lisboa. A sua revelação foi testemunhada pela “escolhida e ciosa” assistência da conferência que fez na Sociedade Martins Sarmento, no dia 28 de novembro de 1927, intitulada “As pedras falam — Portugal visto de Guimarães”, onde disse:

“Palavras, leva-as o vento — diz um provérbio. E eu direi que as palavras que o vento menos leva, são as que nos dizem as pedras que estão ao vento.

“Quantas brisas, quantas ventanias, quantas tempestades não têm bafejado ou chicoteado as pedras do vosso castelo, e vede se a linguagem delas se calou, ou se, pelo contrário, não é cada vez mais forte, cada vez mais retumbante, cada vez mais solene, a voz com que essas pedras vos dizem e nos dizem: Aqui nasceu Portugal!”

Finalmente, o Berço, com o sentido de lugar onde se começou a afirmar a independência do país, tem um uso mais antigo, sendo interessante observar os efeitos do curso do tempo e das modas nas palavras que têm acompanhado a sua transformação. Durante séculos, Guimarães foi o Berço da Monarquia, na verdade mais por associação ao nascimento de Afonso Henriques do que ao feito de S. Mamede. Com a aproximação e a instauração da República, somente os monárquicos continuaram a usar essa expressão, entretanto substituída por Berço da Nacionalidade ou Berço da Nação (fórmula que seria a preferida durante o Estado Novo). Nos dias que correm, prevalece a expressão Berço de Portugal, recorrente a partir de meados da década de 1920, mas que encontrámos, pela primeira vez, na obra “Guimarães Agradecido”, de 1747, que Tadeu Luís António Lopes de Carvalho Camões dedicou à estadia em Guimarães do arcebispo D. José de Bragança.

Se dizemos que aqui nasceu Portugal, é porque foi em terras de Guimarães que aconteceu a primeira tarde portuguesa, permitindo-lhe afirmar-se como a cidade berço da nacionalidade.

Mas convém nunca esquecer, como parece andar esquecido, que, muito antes de haver Portugal, houve mãos devotas e delicadas que cortaram, entalharam, uniram e afagaram, com brandura e paciência, a matéria bruta com que se fez o berço metafórico que o haveria de acolher. Se o berço é Guimarães, foram as mãos fundadoras de Mumadona que o criaram.

O seu a sua dona.

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