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O caminho de Pontevedra

Amaro das Neves
Opinião \ quarta-feira, outubro 26, 2022
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Esta é uma discussão que tem de ser feita. Com tranquilidade e pedagogia, para esclarecer e afastar receios compreensíveis. Não faltam hoje, Europa fora, cidades que avançaram para a pedonalização.

Guimarães não foi desenhada por urbanistas. Resulta de um processo orgânico de conformação ao crescimento. A sua teia de ruas irregulares, estreitas e a convergirem para praças, adequava-se às necessidades de circulação, feita quase sempre a pé, por vezes a cavalo ou em carros de tração animal, mais usados para o transporte de cargas, do que de gente. Todas as distâncias eram suficientemente curtas para serem percorridas a pé. Com o andar do tempo, a circulação de veículos, progressivamente maiores e mais frequentes, impôs a necessidade de alargamento das vias, o que serviu para justificar o derrube das torres que se encostavam à muralha ou o corte da oliveira da Praça Maior, em 1872.

E depois veio o automóvel, que chegou a Guimarães quando entrava o século XX. A sua introdução foi lenta, mas imparável. Pelas notícias dos jornais, pelas decisões da administração municipal, pelos projetos de novos arruamentos e pelos planos de urbanização, percebe-se que o foco dos melhoramentos camarários deixou de estar centrado nas pessoas, transferindo-se para o trânsito rodoviário. Houve até intenções de rasgar avenidas largas, que atravessariam o espaço que as muralhas delimitaram — que, felizmente, nunca saíram do papel. O progresso vinha sobre rodas. E os vimaranenses habituaram-se ao novo modo de vida. Se, antigamente, se ia ao Toural para mostrar a roupa nova, agora ia-se dar umas voltas à praça para exibir o carro novo. Quem tinha automóvel, não ia a pé a lado nenhum.

Nos primeiros anos da década de 1980, debatia-se a cidade existente e a cidade que se queria para o futuro. Talvez porque fossem prudentes, talvez porque a inexistência de maiorias absolutas na vereação a tal obrigasse, os decisores políticos, que eram sábios e sabiam ouvir, foram buscar urbanistas conceituados para os ajudar a pensar a cidade e a definir o seu futuro.

Em 1982, o arquiteto Fernando Távora apresentou o Plano Geral de Urbanização de Guimarães, inspirado nos mesmos princípios que configuraram o Plano Integrado de Reabilitação e Revitalização do Centro Histórico de Guimarães, que será peça-chave do processo que transformaria o Centro Histórico de Guimarães num paradigma de internacional e requalificação urbana e justificaria a sua consagração como Património Mundial, pela UNESCO. Era, além de tudo o mais, uma proposta de devolução da cidade aos seus cidadãos. Na altura, questionava-se, pela primeira vez com suficiente assertividade, o protagonismo que era dado ao automóvel na gestão da cidade.

Recordo a genuína e bem-humorada autoironia do então presidente da Câmara Municipal de Guimarães, numa intervenção em sessão pública de apresentação do PGU de Fernando Távora, quando descreveu a sua rotina de ir ao barbeiro. Retirava o carro da garagem de casa, nos Palheiros. Descia a rua, passava pelas ruas Gil Vicente e Paio Galvão e contornava o Toural, até que chegava à barbearia, no início da rua de Santo António. Não encontrando lugar para estacionar, dava uma segunda volta ao quarteirão, com o mesmo resultado. À terceira, ia estacionar o carro a casa e ia a pé para o barbeiro…

Discutia-se então a necessidade de criar condições para reduzir os automóveis no centro da cidade. Na altura, não faltou quem argumentasse contra a ideia. Passadas quatro décadas, quando finalmente se anunciam passos consistentes para a devolução de parte da cidade à circulação pedestre, os argumentos dos reticentes continuam a ser os mesmos: o comércio, os idosos residentes, o estacionamento, a segurança, a gentrificação.

Esta é uma discussão que tem de ser feita. Com tranquilidade e com pedagogia, para esclarecer e afastar receios, que são compreensíveis. Não faltam hoje, por essa Europa fora, exemplos de cidades que avançaram para a pedonalização, com resultados que permitem contrariar aqueles argumentos: o comércio local cresceu em volume de negócio e em número de estabelecimentos, os idosos passaram a viver numa cidade mais humanizada, a insegurança não aumentou, mas diminuiu, porque quase desapareceram os acidentes rodoviários, a população cresceu.

Atentemos no caso de uma cidade com dimensões e características semelhantes às de Guimarães, Pontevedra, onde foi aplicado todo um cardápio de soluções para reduzir a circulação de automóveis. O processo iniciou-se em 1999, debaixo de um coro de críticas (as mesmas que ouvimos por cá, incluindo a da pressa e a da falta de diálogo).

O alcaide teimou, não dando ouvidos aos que lhe diziam que a teimosia o faria perder a reeleição. A circulação automóvel foi reduzida drasticamente, o limite de velocidade foi fixado em trinta quilómetros por hora, baixando para dez em espaços de maior restrição, as ruas foram devolvidas aos cidadãos. A qualidade do ar aumentou, as mortes por acidentes rodoviários desceram a zero, as crianças passaram a ir a pé para a escola, as pessoas com mobilidade reduzida voltaram a sair à rua, os residentes continuaram a aceder às suas garagens e a usar os seus automóveis para carregar e descarregar as suas compras, a cidade tornou-se mais confortável e acolhedora, o comércio tornou-se mais rentável.

Convertida num exemplo para o mundo, Pontevedra foi galardoada pela ONU, em 2014, com o prémio Habitat, em reconhecimento da qualidade da sua vida urbana e das suas políticas de mobilidade. E, passados todos estes anos, o alcaide, sucessivamente reeleito, ainda é o mesmo.

É possível viver melhor numa cidade sem carros. Para quem só acredita vendo, organize-se uma excursão a Pontevedra. Fica já ali.

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