O desporto como lugar e tempo de igualdade e de liberdade (continuação)
A Mulher no jogo, como em quase tudo que mexe na cidade dos homens, foi excluída, ou mesmo censurada/suspensa, e em troca ofereciam-lhe o lar, o tricot ou uma prática desportiva adequada. A mulher, como dizia Maria Teresa Horta, só existia até à cintura, contudo é com Teresa Horta que Portugal (com muito custo) perceberá que a mulher é um corpo inteiro e que a libertação da mulher é a libertação do homem. Ou, como poetizou na antologia As Palavras do Corpo: “Exercício do teu corpo / oculto / na sua roupa // adivinho-te a dureza / o movimento sedento / a macieza da boca // adivinho o teu carinho / na sede dos meus / joelhos // Adivinho o teu / desejo / sobre a pele dos meus seios” (p. 42). Quando no jogo formos capazes de ver a mulher como a Maria Teresa Horta nos ensinou a ver, não mulher objeto e fada do lar, mas pessoa inteira e completa, como ser humano, talvez possamos fazer do desporto um lugar e um tempo de igualdade e de liberdade. Mas para isso, que as mulheres não tenham vergonha de serem mulheres, nem os homens tenham medo das mulheres. Somos todos humanos, e a dialéctica proposta não é a de Platão, ou melhor, do platonismo dualista, nem a de Hegel que anula a tese e a antítese na síntese. Mas, como na lírica de Luís de Camões – bem expressa na Ilha do Amor de Vénus e das Ninfas –, a harmonização na existência concreta de oposições complementares. Ou seja, a coexistência de contrários é possível e desejável.
Hoje, mesmo depois da FIFA ter declarado, em lei (de 1 de janeiro de 2021), que era errado excluir por estar grávida ou ser mãe, muitas são marginalizadas e suspensas por causa da maternidade. Contudo, ainda perdura, mesmo que seja na letra pequena, a cláusula de que o contrato será rescindido em caso de gravidez. Sim, mesmo no século XXI perdura o modelo machista no desporto e na atividade física, mesmo que cada vez mais vejamos mais mulheres no jogo. Mesmo que esta lei define uma licença de maternidade mínima de 14 semanas, das quais pelo menos 8 devem seguir-se ao nascimento, garantindo dois terços do salário. E mais, está previsto tal, mesmo que as legislações nacionais o não preveem. Esta é uma tentativa de defender a mulher atleta profissional, destapando a ostracização a que a mulher era atirada quando se propunham constituir família com marido e, sobretudo, filhos/filhas. Mas não faltam relatos de discriminação, em países como Portugal e outros que vivem uma democracia liberal, de discriminação da mulher e a quem é perguntado se no futuro próximo pretende constituir família. Porém, como aconteceu na nossa vizinha Espanha, em 2022, no Levante, Maria Alharilla recebeu do clube, após o parto, a renovação do contrato por dois anos. Algo estará a mudar?! Todavia, pela mesma altura, Helen Ward, da seleção do País de Gales, mãe de duas crianças, conheceu o lado amargo. O seu clube, o Reading, apostou na profissionalização e ela ficou para trás. Ou, o caso da americana Alex Morgan, mãe em 2020, e que tem a sua filha habitualmente nos treinos. E quando participou nos Jogos Olímpicos de Tóquio sentiu, e muito, a ausência da sua filha. E em Portugal, como estamos?
Em Portugal estamos a fazer caminho, mas ainda há muitos obstáculos a superar. Às mulheres que jogam, no desporto ou praticam atividade física, apelidamos de meninas. Parece algo de doce, mas na realidade é o paradigma machista de sempre, que parece não querer aceitar que as mulheres são capazes dos mesmos jogos que os homens, não são meninas, nem “marias rapazes”. São um corpo de esforço, de prazer, de dor e de alegria, ou seja, são um corpo como o do homem é. Kika Nazareth, uma das estrelas do futebol português (e é cada vez mais uma realidade no panorama desportivo português a presença da mulher, um facto, e com muito sucesso), não gosta de que se intitule o seu futebol de “futebol feminino”. E está plena de razão. Futebol é futebol, seja praticado por homens ou por mulheres, ou entre mulheres e homens. Porquê persistir em apelidá-lo de “futebol feminino” se o “futebol masculino” é só “futebol”?! O modelo de discriminação da mulher permanece, embora disfarçado, de desporto adequado. Kika numa entrevista ao Expresso a 1 de julho de 2022 foi clara: “Mas não gosto de dizer futebol feminino. É o futebol, sem género. Jogo futebol, não jogo futebol feminino”.
Elas, as mulheres, melhor do que ninguém, sabem que na sua natureza feminina há limites, como na natureza masculina também há limites, e o que uma ou um atleta, profissional ou não, deve aprender em primeiro lugar, é a conhecer o seu corpo para dele tirar o melhor partido sem pôr em causa, jamais, a sua saúde física, mental e social. E nas mulheres a menstruação é uma realidade muito limitadora. Primeiro, receiam ficar sujas pelas manchas que transparecem no seu equipamento desportivo, sabendo que nos dias de maior fluxo não dá para trocar o penso ou o tampão. Depois, o ciclo menstrual de regularidade só tem o nome. Mas, igualmente sabem, que as dores, as alterações de humor ou o cansaço extremo lhes alteram e perturbam de calendário de treinos e das competições desportivas. Pois é algo que lhes dá desconforto, e, concomitantemente, uma sensação de fraqueza e de fragilidade. Ou, então, aumenta-lhes o apetite pondo em risco qualidades necessárias para as práticas desportivas. Poderão, graças as maravilhas das novas tecnologias, usar uma aplicação para monitorizar o ciclo menstrual de cada atleta, e, para assim, potenciar o desempenho desportivo e antecipar eventuais complicações ou qualquer problema que as possa limitar. Ou, talvez, usar analgésicos e anti-inflamatórios, ou mesmo contracetivos, ou mesmo soluções não farmacológicas. Mas em rigor, tudo depende de mulher para mulher.
(Continua)