O desporto como lugar e tempo de igualdade e de liberdade (continuação)
A mulher, pelo menos na sociedade ocidental, está emancipada, contudo não nos iludamos – a mulher continua a ser espezinhada por muitos estereótipos que a excluem de lugares e tempos em que elas também podem e devem participar. O caso da Alina, nascida no Paquistão, filha de uma família tradicional e conservadora, emigrada com os pais no Reino Unido (mais propiamente em Manchester), para praticar desporto, e neste caso o futebol, comporta-se como alguém que está em perigo. A proibição familiar, na conjunção religiosa e étnica do Paquistão, implica perseguição e condenações de uma atividade que não é própria para as meninas e as mulheres (eis o motivo da condenação). E isto é pós-pandemia, estamos em 2022, em que ela partilha com cuidado máximo cada frase que professa, como denunciasse algo proibido, que é, nem mais nem nemos, o amor que dedica ao futebol desde os seus 13 anos. Participou num torneio em Manchester entre equipas de refugiados, requerentes de asilo ou migrantes da área metropolitana de Manchester, em que durante 10 minutos equipas de 8 elementos se defrontavam. Resultado, Alina foi eleita a melhor jogadora do torneio. E este só aconteceu graças ao Football for Humanity, fundado em 2013 por Chris Thomas, que proporciona a muitas meninas e mulheres o gosto realizado de jogar futebol no seu projeto Football Freedom Project.
E isto acontece no moderno Reino Unido graças, não à rainha da Inglaterra, mas a Rahwa, que fugiu da Eritreia por ser cristã católica. Do Dubai, em 2020, foi para Manchester, e aqui tem demonstrado a fibra do ser mulher sem veleidades e facilidades. E ela, que não se resigna, que sem olhar a credos e outros traços culturais, congrega estas mulheres, libertando-as dos jugos machistas e étnico-culturais-religiosos que, com estereótipos de séculos, aprisionam a dignidade da mulher. Mas, e não se pasmem, alguns homens estão com elas, pois experimentaram na alma e no corpo a discriminação e a perseguição. Como disse Maria Teresa Horta, a libertação da mulher é também a libertação do homem.
Como Chris Thomas propõe – colocando pontes onde há buracos na sociedade que desconectam pessoas –, eu questiono se nós, em Portugal, já colocamos pontes neste buraco que trata a mulher que pratica desporto, profissional ou amador, como meninas? Para quando, e de facto, será o desporto um lugar e um espaço de igualdade e de liberdade para a mulher? Tantas horas para o futebol para falar e explanar a virilidade do futebol macho, e uns meros apontamentos (e só quando se impõe) para o futebol e outros desportos praticados por mulheres. Mas este é um país que faz do futebol abertura de telejornais e tem jornais de sobra, e outros meios, para o desporto rei (nunca, na cabeça de tais iluminados, será o desporto rainha). Razão tem Jacques Derrida, em Vadios, porque irmão e não irmã, porque pai e não mãe, …, e eu acrescento, porque desporto rei e não desporto rainha? E como ele concluiu, porque somos uma sociedade machista e orgulhosa da sua virilidade. Que bom seria se no desporto, seja qual seja, se pudesse afirmar com ambos os pulmões como Chris Thomas: que seja um espaço de liberdade, onde todos se situam livres e se expressem sem limitações. E isto nada tem a ver com a idiotice woke.
Mas, da minha parte, eu quero que seja também um lugar de igualdade. Segundo a minha perspetiva, enquanto não olharmos a mulher como um ser humano igual, sabendo nós que, como acontece com todos e todas as pessoas humanas, as diferenças favorecem a nossa riqueza e potenciam as nossas capacidades. Nenhum de nós é totalmente capaz, e, como seres sociais, revelamos esta realidade no holismo da nossa existência. Precisamos e somos diversidade que se completa e se complementa, quer como humanidade, quer como criaturas entre as criaturas deste planeta. Cada um de nós, como o escreveu Fernando Pessoa – “O povo português é essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo” –, ou Mia Couto – “eu sou muitos” – é parte do outro/da outra, e somos chamados a humanizar-nos tomando parte com os outros/as outras. E se o desporto não está ao serviço desta humanização, que nos define como seres em relação com o Outro, com os outros e as outras, e toda a maravilha em que habitamos, então o desporto não cumprirá o seu papel entre nós. É exatamente isto que, Cláudia Neto, internacional portuguesa, que realça a mentalidade das mulheres que jogam futebol, mais ambiciosas e mais crentes em si próprias, que mesmo assim reconhece em agosto de 2020, o que a choca, saber o que um homem ganha em comparação com uma mulher: “eles ganham demasiado, ganham o que ninguém ganha. Dificilmente vamos igualar as coisas, porque os homens têm salários extraterrestres”. Exigir aos clubes, onde o dinheiro não abunda (tirando os 3 grandes e mais dois ou três), que metade do plantel seja profissional é condenar ao fracasso esta realidade do futebol jogado por mulheres. Para se promover a igualdade, só uma discriminação positiva, claro que entre clubes, permitirá que amanhã em condições similares (mais que iguais) se poderá fazer do desporto um lugar e tempo de igualdade. Mas como o que agora preside é o lucro, não vejo com olhos esperançosos o futuro que se avizinha, a que acresce uma mentalidade de antanho que parece querer regressar. É preciso mais que uns milhares de euros para que tudo seja possível. Mesmo que não sejam os muitos milhões do futebol jogado por homens.
Mas temos casos de sucesso de mulheres portuguesas que no desporto, particularmente no futebol (esse mundo de e dos homens), vai-se abrindo cada vez mais à presença da mulher. Recordo a Helena Costa, filha de uma casa onde não se via futebol, nem havia a paixão clubística, mas jogando na rua com os amigos aprendeu a jogar e a perceber o jogo da bola com a qualidade que muitos não percebem. É no scouting que esta mulher do futebol releva as suas mais-valias e o seu mérito, desde Frankfurt com Bem Manga, como coordenadora de scouting e treinadora, da Escócia à Alemanha, e à Premier League. Demonstrou que não sendo fácil (embora hoje seja algo mais fácil que outrora) é pelo trabalho, a competência e a responsabilidade que neste mundo machista uma mulher se pode pôr ao nível mais alto. Ou, o caso da árbitra Beatriz Coimbra, que desde pequena gosta, ou afirma ser “maluca por futebol”, que apesar das agressões e insultos que muitas vezes sofrem, por amor ao jogo, quer assumir esta missão. Ela que escolheu o desporto como formação académica e seu futuro trabalho, só quer contribuir para a lisura do jogo e o respeito pelas regras, e os valores fundamentais do mesmo.
(Continua...)
Guimarães, 20 de março de 2025
Pe. Doutor Francisco de Oliveira