O desporto e a economia (conclusão)
Foi o Império Romano que colocou o entretenimento no centro da vida pública. As lutas dos gladiadores são a face mais visível dessa paixão pelos grandes espetáculos que atraíam milhões, as corridas de cavalos não lhes ficavam atrás nas preferências do público. As apostas, as provas de quadrigas (pequenas carruagens atreladas a quatro cavalos e conduzidas por um auriga) movimentavam verbas muito significativas – de tal forma que um desses ases dos arreios acumulou uma fortuna significativa graças às suas vitórias. Não falta quem o aponte (talvez de forma muito forçada) como o desportista mais bem pago da história. Chamava-se Gaio Apuleio Diocles, nascido humildemente na Hispânia, mais propriamente na província da Lusitânia, que se tornou um herói nas pistas e arenas romanas. Destacava-se o seu talento e a definição estratégica como abordava as provas (a sua capacidade de arrancar vitórias nos últimos metros, vindo sempre de trás) e a sua coragem (pois estas provas de quadriga envolviam riscos físicos que punham em perigo a própria vida) apaixonavam os adeptos e o público em geral. Segundo os registos venceu 1462 das 4257 em que participou, e 861 segundos lugares. Mas ainda mais, foi o primeiro a chegar às 100 vitórias num único ano, e estabeleceu o recorde de 134 vitórias anuais. E para que se saiba que não é de hoje a importância atribuída aos atletas dos diversos desportos e modalidades, tudo isto se sabe porque lhe erigiram (pelo que se sabe e pelo que os testemunhos arqueológicos nos permitem apurar) dos monumentos – um junto ao Circo de Roma e outro na cidade onde terá fenecido, Preneste. As inscrições nestes monumentos referem que arrecadou a fortuna de 35.863.120 sestércios, numa vida desportiva entre os 18 anos e os 42 anos, 7 meses e 23 dias. Sabemos também que desta fortuna só recebeu uma fração, pois a maior fatia é para os proprietários das equipas. Primeiro representou a equipa Branca e terminou a sua carreira na equipa Vermelha, e nunca representou as equipas Azul e Verde. E sabemos que ordem crescente destas equipas na sua dignidade é de Branca para Vermelha. Que similitude com a atualidade desportiva… nada de novo!!!
O planeta gira, o mundo pula e avança, mas há coisas que nunca mudam. O dinheiro, e a mercantilização da vida parecem dominar a existência da humanidade, desde os mais simples das mulheres e dos homens, às mais abastadas das mulheres e dos homens. Onde corre o filão do dinheiro (do poder) aí estão os do costume – o que são capazes de vender tudo e tudo comprar, crentes de que tudo tem um preço, ou seja, imbuídos de um economicismo que alguns apontam hoje como a ponta desse icebergue chamado neoliberalismo). O filósofo americano, Michael J. Sandel (in O que o dinheiro não pode comprar. Os limites morais dos mercados) afirma que algumas das coisas boas da vida são corrompidas ou degradadas quando convertidas em mercadorias, e hoje “passámos de uma situação em que tínhamos uma economia de mercado para uma situação em que somos uma sociedade de mercado” (p. 20). Atualmente a pista árabe é a que mais revela este apetite, destacando-se a Arábia Saudita e o Qatar, que perceberam os méritos do Jogo, do desporto, como a melhor forma de manter os seus níveis de abastança num cenário de diminuição de receitas petrolíferas, apostando por esta via em investir na imagem do país, regime e cultura face de sobremaneira ao Ocidente. O futebol é o exemplo, pelo menos para nós, mais paradigmático desta realidade. Olhamos com muita desconfiança os investimentos chineses, mas com muita benevolência os investimentos árabes. Mas seria bom que nos lembrássemos do aforismo árabe para que um dia não choremos lágrimas de crocodilo – “quem comprar o que não precisa, venderá o que precisa”.
Pedro Proença, que nos recorda sempre que o futebol profissional gera 3.500 postos de trabalho e que representa 0,3% do PIB em Portugal, afirma que “o desporto não é alheio a essa expetativa” (Expresso de 15.03.2024, Primeiro Caderno, p. 31). Que expetativa? Os desafios que se colocam a quem faz crescer a economia. Sempre a economia, mesmo que adorne o seu discurso com os valores mais nobres do Jogo, apelando à paixão dos adeptos e ao talento do atletas que exportamos (temos os melhores jogadores, treinadores e dirigentes, diz o senhor presidente), mas tudo se encaminha para o economês do seu presidente da Liga Portuguesa de Futebol Profissional: a nível fiscal e os mais de 228 milhões de euros em impostos a AT, os 23% IVA (quando os demais espetáculos pagam 6%), o não ter sido contemplado no famoso PRR (vulgo, a bazuca do Costa), etc. Sim, esta Liga existe para isto mesmo – fazer dinheiro. Como nos desafia Michael J. Sandel – “A verdadeira questão é saber se introduzir este ou aquele mecanismo de mercado irá melhorar ou prejudicar o que o jogo tem de bom” (pp. 186-187). Ou, como o ilustra o caso vergonhoso da SAD do FCPorto neste ano de 2024, que as eleições permitiram vislumbrar, não será a mesma realidade dos outros clubes, de sobremaneira do Benfica e do Sporting?! Quem ganha com isto? Será que não são os mesmo de sempre, como no caso de Gaio Apuleio Diocles?!
Há dúvidas, e muito justificadas, sobre a sustentabilidade das SADs e da forma como irão sobreviver nos próximos tempos com as receitas que conseguem gerar, a estrutura de custos que suportam e o que vierem a ser os próximos contratos de direitos televisivos, que nunca serão tão chorudos como o são noutras paragens. Os clubes portugueses e as suas SADs estão tecnicamente falidas, por mais que alguns continuem a dourar a pílula das suas contas. Pedro Proença, com o mercado e a crença neoliberal de que este é a solução para tudo, indo atrás de outros, propõe a internacionalização da Taça da Liga (competição feita à medida para os ditos grandes), já a partir de 2026, e, simultaneamente, explorar o mercado da saudade e o mercado americano. E cada vez mais o universo da Web e de toda a parafernália de jogos digitais e das marcas desportivas e pessoais dos atletas, etc. Contudo, e para agora, serão sempre a venda de ativos, mormente os jogadores (tratados como mercadoria), a equilibrarem as contas, e o fair-play financeiro da UEFA é só mais um cutelo no pescoço dos clubes e das suas SADs. Falhar a Champions League e outras competições europeias será, como dizem os brasileiros, uma caída na realidade para todos os nossos clubes (sem exceção).