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O último Fidalgo do Toural

Amaro das Neves
Opinião \ sábado, junho 04, 2022
© Direitos reservados
A sua vida dava um filme, um musical com muitos passos de dança e uma trama onde a fantasia e o lirismo se enredariam de tal modo que não saberíamos classificá-lo como tragédia, drama ou comédia.

Quando ainda corria o século passado, um amigo que já não está entre nós, o Paulo Dias, muitas vezes me desafiou para que escrevesse sobre o último morgado do Toural. E eu, que não estava para aí virado, invariavelmente lhe respondia que sim, mas quando tivesse tempo. Recordei-me daquelas conversas quando, há dias, um outro amigo, o Eduardo Magalhães, que estava a preparar uma das suas lições de musicologia, me perguntou sobre uma filha de João António Nápoles, que faleceu na infância e a quem o pai dedicou um hino.

Percebo bem o interesse por essa personagem fascinante que se chamava, em forma abreviada, D. João António Vaz Vieira da Silva Melo Alvim Nápoles, a que se acrescentava Pinto Teles de Meneses Malheiro Madeira e Freitas, e que ficou conhecido, simplesmente, como o Fidalgo do Toural. A sua vida dava um filme, um musical com muitos passos de dança e uma trama onde a fantasia e o lirismo se enredariam de tal modo que não saberíamos classificá-lo como uma tragédia, um drama ou uma comédia.

Nasceu no dia 26 de janeiro de 1848, no Toural, na casa de linhas horizontais com uma cornija que, ao centro, se arredonda e eleva para formar o tímpano que, nos dias de glória, se exibia o brasão da família. Seria herdeiro do morgadio estabelecido no primeiro quartel do século XVIII pelo doutor Jerónimo
Vaz Vieira, do Conselho Régio e Desembargador do Paço, que, no seu primeiro século de existência, agregou um vastíssimo património, delapidado ao longo do segundo.

No século XIX, a Casa do Toural foi o centro da vida social, política e cultural de Guimarães. João era filho de António Vaz Vieira da Silva Melo Alvim e Nápoles, antigo coronel de milícias que, na sequência da vitória dos liberais, presidiu à Sociedade Patriótica Vimaranense e abriu a sua casa a festas dispendiosas e a saraus luminosos. O filho, também pouco dado a lidas terrenas, como as que decorriam da necessidade de preservar o seu património, seguiu-lhe o exemplo, nunca se poupando a despesas para manter a tradição festiva daquela casa.

O último fidalgo do Toural era, acima de tudo, um melómano. Nos seus saraus, nunca faltava uma orquestra, muitas vezes acompanhada por uma banda de música à entrada. As suas refeições quotidianas tinham sempre acompanhamento musical, normalmente com um trio de cordas. Chegou mesmo a financiar a criação de uma filarmónica, a Banda do Jacinto Maneta, pagando os instrumentos e as fardas. Além de melómano, João Nápoles era um músico de formação sólida e um pianista de reconhecido valor. Dirigia concertos em salões e igrejas com uma batuta de prata maciça, abundantemente decorada com palmas e rosas, que seria oferecida pela Câmara Municipal, em 1939, ao Museu de Alberto Sampaio. Também teve caprichos de compositor, sendo o autor do primeiro Hino de Guimarães, executado pela primeira vez no dia 1 de janeiro de 1887, assinalando a entrada em vigor da autonomia do concelho, na sequência do conflito brácaro-vimaranense de 1885-1886.

Num dos últimos dias de fevereiro de 1869, casou com Maria Arrochela, filha do conde de Arrochela, par do reino e senhor do palacete de Vila Flor, então já falecido. Desse casamento nasceram três filhas: Virgínia, Helena, que faleceu com apenas vinte dias, e Laura.

Por aqueles dias, apesar das rendas que sustentaram aquela casa estarem exauridas, João António continuava a não prescindir das festas, da música, da criadagem, da carruagem puxada por cavalos imponentes, dos recitais de harpa e piano, do chá da melhor qualidade. O património da família, já irremediavelmente depauperado por sucessivas gerações, exauriu-se.  As dívidas acumulavam-se, assim com as ações interpostas pelos credores. Acabou mesmo por perder a casa, levada à praça em outubro de 1878, numa execução judicial a favor do Banco de Guimarães. Com a casa, foi o casamento: logo no mês
seguinte, Maria Arrochela entrou em tribunal com uma ação de separação de pessoas e bens.

Nos anos que se seguiram, o último morgado do Toural manteve o aprumo de fidalgo rico e esbanjador. Ainda ofereceu o hino à sua cidade, mandando-o imprimir do seu bolso arruinado. Acabaria em Vizela, a viver numa humilde barraca de madeira, cedida por um seu antigo caseiro, com as suas mãos de pianista às voltas com um sarilho de dobar algodão. Manteve, sempre, a compostura de fidalgo e nunca prescindiu do seu chá de melhor qualidade.

Faleceu octogenário e quase esquecido, em janeiro de 1930, tendo sido sepultado em campa rasa. A breve nota necrológica que lhe dedicou o jornal O Comércio de Guimarães descreve-o como homem “de fino e fidalgo trato, lhano e afável, [que] falava do passado com saudade, mas não com rancor”.

A sua vida, se não der um filme, dará um livro.

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