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Os Jogos Olímpicos: a sua promessa e a sua realização

Francisco Oliveira
Opinião \ segunda-feira, novembro 03, 2025
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Serão os jogos, como desporto e atividade física, e particularmente os Jogos Olímpicos, o novo ópio do povo, como argumenta Marcel Perelman no seu livro Barbaric Sport: a global plague?

O antropólogo Marc Augé soube estabelecer uma aproximação entre o desporto e o regime de construção de sentido no Ocidente. Para muitos e muitas o sentido da vida, nos seus mais diversos vetores, é hoje despido de valores que outrora definiram a existência concreta de povos inteiros, e que cada indivíduo fazia seu. Por exemplo, a dimensão metafísica e transcendental do existir foi deixada para trás, ou, na melhor das hipóteses, encerrada num espaço e tempo privado / íntimo da vida de cada qual. Tudo parece reduzir-se ao pragmatismo cerrado, e sempre redutor, do todo da humanidade e do ecossistema da sua existência. O próprio vocabulário foi abandonado ou alterado para as realidades imanentes da concretude hodierna. Por exemplo, “salvação” / “salvar” é, na linguagem digital e tecnológica, um substantivo ou verbo da sua gramática. Já não se espera um Salvador transcendente, vindo dos Céus, mas somente uma aplicação feita por nós para nos salvar (uma foto, os dados de uma viagem, uma transferência bancária, etc, etc). É dos ecrãs que vem a salvação. O sentido da vida passou a construir-se empiricamente, de forma espontânea, e sem grandes pensamentos. A teoria foi dispensada, o que interessa é a prática. Vivamos um dia de cada vez, e depois se verá. Tudo parece reduzido a um simples livro de instruções, e sempre como meta se coloca o sucesso. Ora, segundo Marc Augé, o ritual desportivo coloca a expetativa do atleta ou do praticante de atividade física neste ritual, sempre coincidente com a celebração. A celebração, o auge / a salvação, é no fim daquele esforço memorável, minutos ou horas (às vezes dias), o tempo regulamentar, em que as sortes estão decididas e o próprio futuro terá existido. E sempre na certeza de que este futuro, condenado rapidamente ao passado, torna-se ciclicamente possível. Uma verdadeira liturgia ascética e celebrativa, não na procura de algo ou alguém que nos transcenda, mas na busca de nos transcendemos nos limites e na finitude da nossa imanência.

Os Jogos Olímpicos são hoje, e, infelizmente, também como um grande negócio (comum a todos os grandes eventos e campeonatos desportivos, quer profissionais, quer amadores), o expoente máximo daquilo que Marc Augé estabeleceu como o desiderato maior do jogo na sua dimensão celebrativa: palco de vaidades e ocasião de negócios. Aqui os atletas e desportistas, tornados mercadoria, são marionetas manipuladas por sombras que fazemos de conta não topar. E, de sobremaneira, na sociedade espetáculo em que vivemos, fazemos o Circo Romano, com toda a sua festa e horrores, parecer um mero esboço do que hoje são os Jogos Olímpicos: um circo de interesses, e, não raramente, muito obscuros, onde, debaixo da capa do desporto, o que se celebra é o poder de alguns sobre os demais. Portugal, não é exceção à regra, pois vive e respira desporto, onde o futebol reina como o mais popular, mas onde, igualmente, outras atividades e modalidades desportivas começam a ganhar relevo. E como isso me satisfaz! E as conquistas dos atletas nacionais, nas mais diferentes modalidades enchem-nos de muito orgulho! E, sobretudo, porque o fazem com escassas condições pessoais e físicas, mas sempre com grande esforço e sacrifício. Contudo, o que sublinhamos sempre é que estas conquistas evidenciam o potencial de Portugal alcançar grandes objetivos no panorama desportivo internacional! Deslocou-se a geopolítica e a economia e finanças para o desporto? Mas como? Não são estas vitórias fruto do esforço pessoal destes atletas que, ignorados até às vitórias, são aproveitados pelos poderes políticos e económico-financeiros (sem esquecer os sacerdotes de hoje, como os definiu Richard Rorty os jornalistas, os meios de comunicação social) para sempre se promoverem nos seus poderes?! Prometem melhores condições e mais apoios, e os anos passam e tudo se mantém igual até à próxima competição ou olimpíada. Razão tem Jules Boykoff, no seu livro Jogos de Poder: uma história política das Olimpíadas (Zigurate, 2024), quando escreve que os “Jogos Olímpicos são a mais elaborada extravagância do mundo nas áreas do desporto, dos meios de comunicação e do marketing. (…). Sob a superfície lustrosa do olimpismo de aparência positiva, existem problemas enraizados que corroem os Jogos por dentro” (p. 13).

Os Jogos Olímpicos transformaram-se numa máquina geradora de desigualdades. O Comité Olímpico Internacional (COI), e não os atletas, é quem recebe a maior fatia, e sempre desmesurada, do dinheiro que se move e se limpa nestes megaeventos. O COI tornou-se uma câmara de ressonância de autoelogios, sempre com bons propósitos (como a não politização dos Jogos Olímpicos e a sustentabilidade ecológica e económico-financeira, etc), mas realiza clandestinamente com as elites dos diversos poderes, a forma como o desporto evoluiu de passatempo sem pagamento (des-porto, ou seja, “sem portagem”) a negócio lucrativo, e de estar ao alcance de uns poucos para um espetáculo para tantos. Uma nova oportunidade de negócio e de novos poderes (ou seja, os velhos poderes de sempre: o lucro e o sucesso). O capital é que comanda, mesmos o poder político e os meios de comunicação social são hoje, mais do que nunca na nossa contemporaneidade, dominados pelo poder económico-financeiro. Não se pode olvidar que o barão Pierre de Coubertin alicerçou os Jogos numa base de contradições, rejeitando publicamente as interferências políticas, mas nos bastidores (onde tudo se resolve) mobilizou agentes do poder político e económico. Não sejamos ingénuos! Sabemos que o tipo de entusiasmo que o desporto gera pode ser canalizado em diversas direções. E que deve ser politicamente neutro, o que não se equipara a hipocrisia, como hoje tantos e tantas gostam. Já basta em tantas instituições culturais, académicas, religiosas, e outras, de sempre que confunde neutralidade com apolítico. Ora, ninguém é apolítico! E o desporto não é uma ilha isolada no oceano da sociedade. Contudo, os que gostam de confundir, preferem sempre os bastidores que, com a capa preta da hipocrisia, resolvem a favor dos seus interesses próprios e institucionais aquilo que facto conta. E os Jogos Olímpicos são uma poderosa força a ter em conta no xadrez deste jogo de interesses.

Serão os jogos, como desporto e atividade física, e particularmente os Jogos Olímpicos, o novo ópio do povo, como argumenta Marcel Perelman no seu livro Barbaric Sport: a global plague? Serão eles mais alienantes que a própria religião, na denúncia de Karl Marx? Segundo este autor, o desporto, mais do que a religião, evoca o sonho arrebatador da valorização do indivíduo, e oferece a perspetiva de uma hierarquia paralela. O olimpismo tornado uma doutrina filosófico-religiosa? Ou, uma mente ardente num corpo exercitado (Mens fervida in corpore lacertoso)? Ou, somente uma ocasião de negócio e de vaidades dos poderosos? Tanta parra e tão pouca uva – talvez este dizer popular português possa retratar a época em que vivemos. Gastamo-nos por coisas tão pouco saborosas, ou que se parecem à fugacidade de um cigarro, que nos esquecemos de que o essencial é invisível aos olhos. E os valores que o jogo, quer como desporto, quer como atividade física, nos propõe são para a pessoa como um todo e para toda a humanidade, habitando esta casa comum em fraternidade e solidariedade, uma construção de humanidade e de comunidade. Sempre na busca da paz, que dá muito trabalho, e não na vanglória de mandar. Tanta quinquilharia, com o triunfo do capitalismo mais severo, que até os mais ideológicos se deixam derrubar pelo seu brilho, quando uma só coisa interessa. Por isso Milan Kundera, na sua escrita tão interrogativa e pouca exclamativa, desafia-nos, na nossa contemporaneidade, a colocar a pergunta mais importante. “Porque é que não somos felizes?”

 

Guimarães, 22 de outubro de 2025

Pe Doutor Francisco de Oliveira

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