Os Jogos, os desportos e a Atividade (continuação)
Se a sobrevivência e a evolução da humanidade dependeram, desde a primeira hora, da sua capacidade motora e de movimento, e dos seus grandes músculos que permitiram a sua ação – muitas vezes evasiva – sob o meio ambiente (quer físico quer social) e a respetiva transformação no sentido de satisfazer as suas necessidades básicas. E o jogo, ou jogos, que lugar ocuparam e ocupam nesta humanidade que somos!? Roger Caillois, em Les jeux et les hommes, afirma que “os jogos não são regras e ficções. São sobretudo ou regras ou ficções” (p. 41). E como pretende afirmar com isto?!
Porque o jogo é consubstancial à cultura (em todas as suas facetas, de sobremaneira religiosa), e onde não raramente um jogo é mais que um jogo (cf. p. 136), o seu lugar é único no ser e fazer humanidade. Já nas páginas 42 a 43 Roger Caillois apresenta 6 caraterísticas essenciais para uma definição do jogo: livre, separado, incerto, improdutivo, regulado e ficcionado. Será que hoje, nós que gostamos de desporto e de atividade física, percebemos este pioneiro estudo de Roger Caillois sobre o jogo e a humanidade!? Será que somos capazes de o colocar, não só como ludus, mas como uma paideia que promove um crescimento sadio e equilibrado do individuo e da própria comunidade!? Ludus e paideia não são categorias do jogo, mas maneiras de jogar, afirma Roger Caillois na p. 119. O jogo, como desporto e/ou atividade física, convoca livremente não só o corpo, mas o espírito e a inteligência de cada mulher e homem, quer como competição quer como lazer, ou somente lugar de encontro. Este deve sempre contribuir para a reta formação (no ser e no fazer) da humanidade em parceria com o local e o tempo onde habita, mas ao praticá-lo separa-se quer física quer temporalmente para o exercitar.
O jogo é alea (sorte), mas também é entendimento, e por isso é incerto. Ninguém ganha à partida, só na chegada. Com sorte, elemento não desprezível, mas sobretudo com esforço, o agôn, e dedicação, e sempre com discernimento e consciência dos limites, e respeito pelas regras, podemos jogar sendo e fazendo humanidade. As fraudes e as más condutas são a negação absoluta do espírito do jogo. Não vale tudo para alcançar resultados e performances. O jogo é por natureza improdutivo, mas hodiernamente é um negócio e fonte de produção. E talvez por isso, a fraude e a falta de fair play, como sempre, e hoje mais que nunca, é mais frequente porque tem de ser produtivo ou um negócio (a famosa expressão, o negócio do futebol). Será que não estamos a desvirtuar o jogo, o desporto e a atividade física!? Eis uma fronteira muito ténue que hoje nos desafia e nos interroga: que desporto queremos nós? E sobretudo, a 6ª caraterística: ficcionado. Sim, o jogo tem uma fundação original de recriar o sagrado/religioso e assumir o papel de sucedâneo dos conflitos. De ser cultura, lugar e tempo de criação e de recreação. Ou, como vimos no alvor da nossa ocidental maneira de ser: em vez da guerra, joguemos!
O corpo humano está organizado para o movimento e para a ação, e é o jogo, como desporto e atividade física, que hoje cumprem esta função. Contudo, é a competição desportiva e os seus resultados a dimensão da atividade física e desportiva que mais sensibiliza e maior atração exerce sobre a grande maioria dos praticantes e aficionados. As noções mais correntes são desporto e treino, e são acompanhadas pela superação e pela busca constante dos limites das capacidades que se expressam na competição. O perigo é deixar de perceber que a atividade física é muito mais do que isto. Que outras dimensões do jogo não podem ser marginalizadas, correndo o ser drama de destruir o sentido primeiro do jogo: brincar. A lógica dos resultados e do lucro apoderaram-se do jogo. O jogo está ao serviço do homem e da mulher toda, desenvolvendo as suas qualidades físicas e intelectuais, aperfeiçoando as funções básicas do organismo humano e promovendo uma melhor condição sanitária e higiénica, bem como no campo da moral e da ética, da estética e da pedagogia. Promove-se o desenvolvimento percetivo, social e emocional de cada um e do todo em que participa o praticante do jogo, do desporto e da atividade física. A atividade física é aqui entendida como a parte maior da qual faz parte a atividade desportiva e a prática desportiva, sendo o desporto de alto nível a expressão mais elevada da prática das atividades físicas. Por outro lado, e não é de mais reafirmar, não há oposição entre a prática das atividades físicas de lazer e recreativas e a prática desportiva de performance voltada para o rendimento e a eficácia. Sem jamais esquecer que o desenvolvimento das atividades físicas, entendidas como um processo social e cultural deve equacionar todas as suas expressões e setores. Pois todas exigem técnicas corporais fundamentais (correr, andar, saltar, …) ou as mesmas técnicas aplicadas e especificas presentes nas diversas modalidades (futebol, basquetebol, andebol, …), e podem ter lugar em qualquer das expressões e setores, mesmo que variem no grau de exigência nos aspetos técnicos, regulamentares, equipamentos, arbitragem, etc.
Assim, percebendo a sua função sociocultural, e de ensino, com notáveis benefícios sanitários e higiénicos, bem como educativos e sociais, o jogo, como desporto e atividade física, fazem humanidade situada e construtora. E com os valores que promovem e as posturas que desenvolvem os desportos e a atividade física potenciam seres humanos mais solidários e retos nos seus valores de entreajuda e de convivência, e ao mesmo tempo a necessidade de aperfeiçoar para ganhar. E sempre pelo respeito e o fair play pelo outro (vencedor ou vencido). Um desporto que promova a formação da mulher e do homem integral, aperfeiçoando constantemente o indivíduo e a sua personalidade, para a valorização e dignificação humana e social. Este é um direito de todos a ser humanidade de sã e boa convivência de uns e outros e o meio ambiente no lugar e tempo em que são chamados a habitar. Continua…