Raul Brandão, escritor vimaranense
A edilidade vimaranense promove hoje e amanhã, uma homenagem condigna a cinco escritores (três dos quais vimaranenses), autênticos valores do Espírito, que não pertencem já a este mundo: Raul Brandão, Carlos Malheiro Dias, Alfredo Pimenta, Eduardo de Almeida e Alfredo Guimarães.
O Comércio de Guimarães, 31 de Julho de 1959
O texto que vai acima pode servir de ponto de partida para uma reflexão sobre o que define a pertença a uma terra, tantas vezes questionada em Guimarães. Será só o nascimento, como pressupõe quem o escreveu, ao excluir Raul Brandão (e Carlos Malheiro Dias) da condição de vimaranense?
Raul Brandão chegou a Guimarães nos primeiros dias de junho de 1896, para se apresentar ao serviço do 1.º batalhão do Regimento de Infantaria 20, aquartelado no “velho casarão negro e em osso” do Paço dos Duques de Bragança. Militar sem vocação (confidenciou a Aquilino Ribeiro que seguiu a carreira militar, em que se sentia deslocado, “para seguir a vontade do pai e para não desgostar a mãe”), ia cumprir a comissão de dois anos a que o obrigava a sua recente promoção a alferes. Instalou-se numa casa de campo nos arredores da cidade e não teve dificuldade em adaptar-se a uma vida castrense “de opereta”, em que “a parada da guarda era às onze — entrada — e tocava à ordem à uma — saída”.
Logo se perdeu de amores por uma rapariga de uma família da burguesia vimaranense, endinheirada e tradicionalista. No dia 11 de março de 1897, véspera do dia em que completou 30 anos, já estava casado com Maria Angelina, de 18. Por esses dias, por proposta de Adolfo Salazar, pai de Abel Salazar, já era sócio da Sociedade Martins Sarmento, instituição a que viria a deixar os livros da sua biblioteca.
Nos anos que se seguiram, a vida de Raul Brandão transcorreu entre Guimarães e a casa que tinha na Cantareira, no Porto, de onde era natural. Em Nespereira, o casal adquiriu a quinta do Alto, onde levantou a casa a que o escritor chamaria a sua tebaida. Na primeira década do século XX, Raul Brandão assentou residência em Lisboa, para onde o conduzira a vida militar e a profissão de jornalista, passando o verão e a época das colheitas em Nespereira. Algum tempo após o 5 de Outubro, fixou-se definitivamente em Guimarães, com intermitências em Lisboa.
Raul Brandão envolveu-se na vida cívica da terra que adotou como sua. Em 1914, quando se agitou um movimento de secessão concelhia, dando expressão às pretensões autonomistas de Vizela, o escritor integrou a Comissão de Defesa da Integridade do Concelho de Guimarães. Foi secretário da assembleia geral da Associação de Proprietários e Lavradores de Guimarães, presidiu a mesas de assembleias de voto em eleições legislativas. Em 1920, destacou-se pelo seu contributo para a valorização da biblioteca do Liceu Central Martins Sarmento. No dia 9 de abril de 1922, com o seu amigo Teixeira de Pascoais, foi secretário da mesa que, no Teatro Afonso Henriques, presidiu às celebrações aniversário do desastre de La Lys…
Raul Brandão faleceu no dia 5 de dezembro de 1930, em Lisboa, para onde havia partido gravemente enfermo, dias antes, para consultar o único médico em quem confiava, o seu amigo Francisco Pulido Valente. Por vontade própria, está sepultado em Guimarães, no cemitério da Atouguia.
Se Raul Brandão está em Guimarães, Guimarães está em Raul Brandão. A vila, que serve de pano de fundo à sua obra ficcional, definida por Jacinto do Prado Coelho como “uma abreviatura do mundo”, cujos habitantes representam “a humanidade inteira”, tem uma dimensão mais simbólica do que real. É imaginária e metafórica, mas foi gerada a partir da Guimarães que o escritor da Casa do Alto conheceu.
A vila de “A Farsa” e de “Húmus” é talhada em granito rude, resguardada por uma montanha descarnada (a Penha), uma praça com uma oliveira e outra com um coreto de zinco e árvores raquíticas, um castelo e restos de muralha, em partes desdentada, e uma igreja com um portal envolvido em nichos com estátuas de santos que se esboroam e um claustro com uma oliveira que se ergue em frente dois túmulos de pedra.
A vila brandoniana, onde ainda se repercutem os sons dos tambores em noite de posses, nas vésperas de S. Nicolau, é Guimarães.
E Raul Brandão é, inquestionavelmente, um escritor vimaranense.