Sempre. 25 de abril de 1974.
O país era soturno e triste, mas aquela manhã nasceu luminosa e sem motivos para pressas. Cheguei atrasado à primeira aula da manhã. A professora não pronunciou o “já tens falta” do costume. Estranhei. A aula de ciências físico-químicas da minha turma do 4.º ano do Liceu Nacional de Guimarães decorria num anfiteatro. Trinta rapazes, alguns deles já com barbas, faziam figura de corpo presente. A professora, que era baixinha, vista de cima parecia ainda mais pequena e frágil. Os alunos sabiam que detestava dar aulas naquela sala, onde lhe faltava o estrado que elevava o docente dois degraus acima dos alunos. A situação não era confortável para a professora e a turma, liderada por alunos já com várias matrículas, alguns com um vasto currículo de mau comportamento, não lhe facilitava a vida. Na sala, a professora representava a autoridade a que já escasseava a força para se impor. Dos seus alunos, nem medo, nem respeito. A maior parte de nós não escondia não ter o menor interesse por aquilo que ali se ensinava. Pobre mulher.
A certa altura, alguém disse que tinha ouvido no rádio que algo de sério estava a acontecer em Lisboa e que pediam às pessoas para ficarem em casa. No intervalo, corriam rumores desencontrados sobre os acontecimentos do dia.
O resto do dia foi passado a acompanhar as notícias. O dia seguinte já tinha começado, quando a Junta de Salvação Nacional se apresentou e o General Spínola leu uma proclamação ao país, em que começou por anunciar o propósito de “garantir a sobrevivência da Nação, como Pátria Soberana no seu todo pluricontinental”. O dia terminava com uma desilusão: a guerra em África, que se sabia perdida, prometia continuar.
Mas a desilusão não se sobrepôs à alegria com que vivemos aqueles dias iniciais.
Na manhã do dia 26 de abril de 1974, os estudantes do Liceu fizeram frente à oposição do vice-reitor e organizaram uma manifestação que foi engrossando à medida que percorria as ruas da cidade. Muitos de nós ainda não tinham compreendido o alcance do momento histórico que estávamos a viver, mas todos aprendemos depressa o que é a liberdade.
Desses dias inesquecíveis, ficou-me a lembrança da grande manifestação no Toural e o discurso memorável de Santos Simões. E depois a manifestação com que se receberam os militares que tinham participado na revolução, no seu regresso ao quartel. E o primeiro 1.º de Maio, quando a cidade foi submergida por um mar de gente como antes nunca se tinha visto.
Naqueles dias, éramos felizes e sabíamos.
Crescemos depressa, enquanto frequentávamos um curso acelerado de ciência política experimental. Estávamos a mudar o mundo.
Celebrámos o primeiro aniversário da revolução com a festa da democracia. Pela primeira vez, depois de meio século de ditadura, votava-se em liberdade. A maior parte dos portugueses nunca tinha votado. Elegeu-se a Assembleia Constituinte. No segundo aniversário, entrou em vigor a Constituição da República, que consagrava a liberdade e a democracia representativa. Ultrapassada a turbulência que sempre se segue às revoluções, o regime democrático entrava em velocidade de cruzeiro e os dias de eleições passaram a ser, também eles, dias de festa.
Porque o povo é quem mais ordena.
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Noite de 10 para 11 de março de 2024.
A cidade adormeceu mergulhada num inesperado silêncio. Nem foguetes, nem buzinas, nem cortejos de automóveis, nem vivas gritados no Toural. Pela primeira vez, em quase meio século de democracia, as eleições não acabaram em festa. Em Guimarães, ninguém teve motivos para celebrar os resultados. Dir-se-ia que, desta vez, ninguém ganhou.
A democracia vive tempos desafiantes. Continua a fazer todo o sentido evocar a palavra de ordem que Jorge Sampaio lapidou:
25 de Abril sempre.