Alberto Fernandes: “O objetivo do CLAV é a correção das assimetrias”
Músico, programador cultural, presidente de uma cooperativa que intervém no território oeste de Guimarães: esta é muita da vida de Alberto Fernandes aos 45 anos. Com as CLAV Live Sessions, concertos presenciais que são transmitidos online, colocou no mapa cultural nacional o território de que é oriundo – a União de Freguesias de Airão Santa Maria, Airão São João e Vermil. A iniciativa continuou em marcha durante o confinamento e chegou recentemente ao Porto Canal. A partir das 19h00 de domingo, o artista protagoniza o 33.º concerto das CLAV, no parque da Devesa, em Famalicão, para apresentar “O outro lado”, álbum a solo que criou durante a pandemia.
Dez anos depois do último concerto, atua domingo no parque da Devesa, em Famalicão. Apresenta um novo trabalho feito durante a quarentena. Como encara o regresso ao palco?
Regressar ao palco passados dez anos é sempre uma dificuldade acrescida. Ser a principal cabeça traz alguns receios e medos. Mas isto é trabalhado, e um artista nunca deixa de ser artista. Vou apresentar nove temas que farão parte do meu primeiro álbum a solo, 90% deles criados na altura da pandemia. Será realizado no Parque da Devesa no âmbito das CLAV Live Sessions; no primeiro concerto, a 04 de julho, tivemos o Luca Argel e a Ana Deus com o “Ruído Vário” e, no dia 08, no próximo domingo, temos este projeto.
Que inspirações emana o álbum? Que temas aborda, que sonoridades transmite?
Este concerto é também “O outro lado” de mim, de um músico que deixou os palcos há dez anos. Também é um lado que o público não conhece. A minha carreira ronda aproximadamente os 25 anos, a maior parte deles como compositor para teatro. Serão nove temas apresentados em primeira mão e gravados ao vivo, para edição em disco. As pessoas só irão conhecer os temas no dia do concerto. Falam um pouco da minha vida nos últimos anos. Há dez anos, residia em Airão Santa Maria, mas não estava muito presente. Às vezes passava semanas fora. Ou saía de manhã cedo e regressava muito tarde. Nestes dez anos, reaprendi a valorizar as pequenas coisas refletidas nestes nove temas. Não têm uma sonoridade específica. As músicas foram criadas em residência artística com o Tiago Lemos, um músico vimaranense, e com o percussionista José Afonso Sousa, de Lousada. Houve o cruzamento de várias linguagens artísticas, desde o indie e o folk ao jazz e à música de intervenção.
No fundo é o regresso de uma das suas facetas, a de performer. Mas tem outras no campo artístico. É compositor de música para teatro e produtor há três décadas. Este gosto pelo som foi precoce?
A música nasceu em mim muito cedo, com seis ou sete anos. Nasceu nas atividades culturais e recreativas de uma associação de Airão Santa Maria, a ARCA. Tinha na altura uma associação que era uma escola de instrumentos tradicionais. Comecei pelo cavaquinho. A partir daí, fui estudar música para o conservatório. O meu instrumento de base é o violino, e já não o toco há 15 anos, por incrível que pareça. Depois houve uma evolução, com projetos muito direcionados para o folk. Aliás, fiz parte de um projeto folk de Guimarães que correu o mundo, o Trovas ao Vento. Ainda é um nome conhecido e reconhecido da década de 90. Fiz a primeira composição para teatro com 15 anos, para o “Auto da Barca do Inferno”. A partir daí, fiquei com o bichinho. Aos 16 e 17 anos, já estava a compor para as companhias profissionais. Comecei logo com o Teatro Construção [em Joane] e fiz produções para o Teatro Oficina, para o Teatro Jangada [em Lousada] e para a Companhia de Teatro de Braga. São 35 produções para teatro.
O concerto integra a segunda temporada de 2021 das Clav Live Sessions, a iniciativa que mais visibilidade tem dado ao Centro e Laboratório Artístico de Vermil (CLAV). O alcance do projeto não se limita à freguesia ou ao concelho. É reconhecido no país. O que é que esta ideia tem acrescentado ao panorama cultural vimaranense?
A criação do Centro e Laboratório Artístico de Vermil já fazia parte dos objetivos da CAISA: criarmos um polo de criação e programação artística. O CLAV não foi projetado para Vermil. Foi projetado para Joane. Só não está lá, porque o presidente da Junta de Joane não teve esta visão estratégica de nos ceder um espaço. Ainda bem que houve essa recusa, porque me permitiu repensar o projeto e trazê-lo para um sítio que foi o melhor: esta união de freguesias. É o primeiro projeto descentralizado e profissional de criação no concelho de Guimarães. O objetivo do CLAV é a correção das assimetrias e serviu para dizer: “nós estamos aqui”. Vermil existe, Airão Santa Maria existe, Airão São João existe. No início, o pessoal vinha para aqui em residência artística e eu dizia que, no final, até poderíamos fazer um pequeno showcase; convidámos a população e vimos como a coisa funciona. E assim surgiram as CLAV Live Sessions.
Os primeiros artistas a atuarem nas CLAV Live Sessions fizeram residência artística?
Os primeiros fizeram já no novo conceito de transmissão online. Houve um período antes disso. Era só presencial. O que é que acontecia? Os músicos estavam em residência e, no final, encontravam uma horinha para tocar. Ao início, até poderiam estar na sala umas 40 pessoas em cima umas das outras, desde que houvesse espaço. Claro que a partir do momento em que a coisa ficou mais formal, surgiram questões técnicas que nos obrigaram a encurtar o público. Avaliei o espaço e cheguei à conclusão de que não iríamos ter espaço para mais de 25 pessoas. Então surgiu a transmissão online, via Internet. Resultou; já tivemos mil pessoas a ver. Começámos a investir no equipamento, a ganhar experiência ao nível técnico e chegámos a esta altura em que as CLAV Live Sessions não são só um espetáculo, mas também um produto televisivo. A partir da segunda temporada de 2020, começaram a passar no canal de televisão Alma Lusa. E agora, no dia 31 de julho, passou o primeiro concerto de uma série de seis no Porto Canal. Foi o das Spicy Noodles [atuaram em 11 de dezembro de 2020]. Já estamos a preparar mais um conjunto para ser retransmitido no Porto Canal. E chegámos a isto. Também estamos na Comunidade Cultura e Arte, na Antena 3. Saímos em muitos órgãos de comunicação e elevámos este território para outro patamar. As própria CLAV já estão a ser objeto de estudo académico. Vale a pena investir na descentralização cultural e social. A Ana Bacalhau, o Tatanka e o João Só já estiveram aqui em residência. Mas quem está em residência não tem de dar concertos. Pode fazer uma temporada para preparar os seus trabalhos. Também já passou por aqui malta do teatro e das artes plásticas.
“É o primeiro projeto descentralizado e profissional de criação no concelho de Guimarães. O objetivo do CLAV é a correção das assimetrias. Tem servido para dizer: “nós estamos aqui”. Vermil existe, Airão Santa Maria existe, Airão São João existe”
Focando-nos outra vez nas CLAV, como surgiu a ideia de as pessoas assistirem aos concertos de auscultadores? Além disso, algum concerto que o tenha marcado, pela performance excecionalmente boa ou pela reação do público?
Todos os concertos são especiais. O que me marca de uma forma muito positiva é aquilo que os artistas dizem. Os artistas chegam ao fim e todos dizem isto: foi mesmo muito intenso. Ao pé de ti, o pessoal está a ouvir o que estás a ouvir, a olhar sempre para ti e a procurar os pormenores todos. Ao ar livre, os artistas dizem que estão a tocar, mas há sempre um fator de distração; ou falas com um colega que está ao lado, ou vais buscar uma cerveja no caso dos festivais. Não existe aquela concentração no artista. Aqui existe. Não há forma de fugir. Inicias o concerto, pões os teus fones e tens que estar ali a ouvir com uma intensidade tal que é transmitida para o artista. Com a pandemia, este processo caiu um bocado porque não pudemos ter público. Quem não pôde ter o público disse que o local é fabuloso. Eles sentem que é pena não terem tido o público, porque sentem que existe uma proximidade muito grande.
E o facto de serem o único projeto a continuar numa altura em que não havia nada foi um marco na história das sessões, aumentando a visibilidade?
Foi mais uma conquista que tivemos em Guimarães. Podemos afirmar que, durante este processo de confinamento, o único concelho do país com programação contínua foi Guimarães, através das CLAV Live Sessions. Também ficam na história da programação artística e da música portuguesa. Nunca parámos. Aliás, fizemos um reforço da programação.
Como se articularam para isso ser possível?
Só em vídeo geramos à volta de 500 gigas de informação, mas temos um sistema de distribuição de ficheiros que nos permite trabalhar em casa e articularmo-nos com outros. No dia do espetáculo, reduzimos a equipa para o mínimo essencial; éramos sempre quatro elementos comigo, porque faço a realização das CLAV. A equipa era de seis. Este espaço permite-nos não fazer cruzamentos. O artista chegava e vinha aqui tentar perceber o que era isto; por norma pensavam que isto era fabuloso. A tudo isto se junta uma paisagem fabulosa e um sítio onde se pode respirar ar puro, no qual se podem passar momentos fabulosos ao nível da criação. Já nos encontrámos mais vezes aqui, mas temos de ter algumas garantias e ainda não existe uma abertura total para a possibilidade de estarmos todos aqui ao mesmo tempo.
Quantas pessoas poderão estar nos concertos do último trimestre de 2021?
Dentro do que é razoável, para não corrermos muitos riscos, poderemos ter dez pessoas a assistir, fora a equipa técnica.
“Durante o confinamento, o único concelho do país com programação contínua foi Guimarães, através das CLAV Live Sessions”
As CLAV Live Sessions são uma das iniciativas de programação cultural sob a alçada da CAISA, a par do festival de percussão PELES e do evento ao ar livre Ecofest Curviã Music. Mas o âmbito da cooperativa estende-se à educação, à saúde e à área social. Como surgiu esta instituição de referência na área oeste do território vimaranense?
A CAISA surgiu de um outro projeto, o CEAPT – o Centro de Estudos para as Artes Populares e Tradicionais. Era um projeto informal pensado a partir de 2008. Tive a preocupação de perceber o que é que este território precisava e o que é que este território queria, tanto ao nível cultural, social, económico e educativo. Fui criando projetos pontuais e tentando perceber se eles estavam a resultar. Quando cheguei à conclusão de que estavam, disse que era a altura ideal para criarmos um projeto mais formal. Em 2015, surgiu a CAISA.
Nestes últimos seis anos, a visão projetada para a CAISA tem-se cumprido?
Não sei se havia uma grande visão, mas havia uma grande preocupação: a descentralização. A descentralização não só cultural e social, mas também na educação; ou seja, criar um projeto que trouxesse para a comunidade aquilo que as grandes cidades têm. Na cultura, podia-se criar um polo ao nível da programação, mas também da criação, e temos aqui o CLAV. Também tive a preocupação dos serviços sociais descentralizados. Este é um território muito envelhecido. A CAISA não trabalha a parte social só nesta União de Freguesias. Trabalha principalmente em duas Uniões de Freguesias: Airão Santa Maria, Airão São João e Vermil e também Oleiros, Leitões e Figueiredo. Precisávamos de um apoio forte ao encaminhamento social e de um conjunto de atividades para os mais idosos poderem usufruir e terem uma vida mais ativa. Quanto maior for a atividade deste público-alvo, tanto ao nível cognitivo, como motor e social, maior é o tempo de qualidade. Temos a Universidade Sénior Teófilo Braga, direcionada para a educação informal para os maiores de 55 anos, e o Centro de Estimulação Cognitiva e de Autonomia (CECA), que trabalha os problemas relacionados com o foro neurológico. Temos perto de 400 idosos em acompanhamento, fazendo o controlo da medicação e a marcação das consultas. Também há trabalho feito ao nível da educação formal. O grande objetivo é a correção das assimetrias que existem ou sempre existiram neste território. E valorizá-lo. Em formato de brincadeira, costumo sempre dizer que estamos no centro do mundo. Isto porquê? Estamos a 12 quilómetros de Guimarães, a 12 de Famalicão, a 17 de Braga. E estamos a 20 minutos do Porto. Portanto, é o centro do mundo. Mesmo assim, este lugar de centralidade tem muitas assimetrias que precisam de ser corrigidas. O projeto CAISA, no seu global, é a tentativa de fazer a correção.
Como lidera uma estrutura com todo esse raio de ação? A abrangência da CAISA exige certamente uma equipa bem coordenada…
A CAISA tem uma direção e depois um conjunto de departamentos. E esses departamentos têm um conjunto de profissionais com autonomia. Tenho a responsabilidade de gerir a primeira equipa, a dos coordenadores dos departamentos. Tenho o meu tempo sempre muito bem definido. À segunda-feira de manhã, tenho uma reunião com a equipa; fazemos logo a programação do que vai acontecer durante a semana. Tenho tempos em que estou sentado no meu gabinete e consulto o Diário da República e. Oriento a equipa e procuro os financiamentos. Depois tenho reuniões e venho aqui para o CLAV. A CAISA tem 35 profissionais a trabalhar, desde malta com formação artística, em saúde, na parte educacional, na parte social. É também um trabalho que permite aos recursos internos deste território terem uma experiência para futuro. Se precisarmos de um profissional de uma área qualquer, vamos ver primeiro se o território o tem. Se tiver, a proposta segue primeiro para esse profissional. Se não tiver esses profissionais, temos de ver outra solução.
Cabendo ao Alberto a função de presidente, que princípios é que o têm norteado para tudo funcionar bem?
Tenho sempre muita dificuldade em identificar ou caracterizar o meu perfil de liderança. Acima de tudo, é um perfil democrático. Toda a gente sabe o que se passa: que financiamento temos, que financiamento não temos, quem é que nos recusou financiamento e porquê. As propostas são colocadas em cima da mesa. Sou a cabeça da CAISA até um dia. Neste momento, sou a pessoa mais visível, mas qualquer pessoa que faça parte da cooperativa tem perfil para continuar o trabalho, porque tem uma visão muito parecida àquela que eu tenho, não só para a estrutura, mas também para o território. Tenho uma liderança democrática, em que toda a gente é valorizada pelo seu trabalho.
“A comunidade tem reconhecido a CAISA. E eu quero que reconheça a CAISA, não o Alberto. O Alberto é a cara da CAISA, mas pode deixar de ser a qualquer momento. A CAISA é uma estrutura democrática, vai a eleições de quatro em quatro anos e pode mudar a direção”
É músico, programador artístico, presidente de uma cooperativa dedicada à valorização da comunidade. Alguma preferência entre estas três facetas? Complementam-se todas?
O Alberto é isso tudo. É o músico, é o artista, é o compositor. É aquela pessoa que projeta o futuro a longo prazo, que tenta olhar para a comunidade e perceber o que ela precisa efetivamente. É pai, marido, amigo. É o Alberto. Não sei muito mais que dizer.
Mas nota as reações da comunidade, pelo menos a desta união de freguesias, ao trabalho que tem sido feito? Falam consigo sobre isto ou notam que o território é alvo de maior atenção? Este trabalho é palpável na comunidade?
Nunca estou à espera de agradecimentos. É palpável, porque os projetos têm a comunidade a participar. Às vezes, há gente que anda distraída e que, quando descobre, sai-se com: “eu não sabia. Eu não sabia que tínhamos isto aqui”. Mas sinto-me uma pessoa acarinhada pelo território. Quando preciso alguma coisa das pessoas, elas aparecem. Se precisarmos de alguma coisa mais específica para doar a um idoso ou a uma família que precise, a comunidade sabe-se juntar para encontrar essa solução.
É muito mais rápido assim, sem as eventuais burocracias do financiamento…
A comunidade tem reconhecido a CAISA. E eu quero que reconheça a CAISA, não o Alberto. O Alberto é a cara da CAISA, mas pode deixar de ser a qualquer momento. A CAISA é uma estrutura democrática, vai a eleições de quatro em quatro anos e pode mudar a direção. O Alberto tem a importância que tem até um dia. A CAISA é a casa de toda a gente que venha por bem e queira usufruir de tudo o que ela possa dar.
E o futuro, como o vê? A prioridade é consolidar o que fez? Ou a criação de algo novo é inevitável?
Este meu regresso ao palco é a oportunidade de continuar a criar. Também funciona como uma terapia. É o momento de repor um conjunto de ideias que tinha na minha cabeça. Em relação à CAISA, há um ciclo que se fecha agora. A CAISA fechou agora um ciclo e vai reabrir um novo em setembro. É um ciclo para os próximos dez anos que terá objetivos muito fortes. O futuro é um investimento cada vez maior no território, com projetos inovadores, para fazer com que Guimarães tenha orgulho nesta parte e na globalidade do seu território.