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Memórias de um Velho Nicolino, por Alberto Vaz Guimarães

Redação
Sociedade \ domingo, novembro 21, 2021
© Direitos reservados
O Jornal de Guimarães vai publicar, entre este domingo e sexta-feira, artigos de opinião acerca das Festas Nicolinas escritos por diferentes autores. O primeiro fica a cargo de Alberto Vaz Guimarães.

As minhas memórias das Nicolinas fundem-se com a minha memória no seu todo. Desde miúdo que as vivo bem de perto, sempre tive essa sorte, diria mesmo que sempre tive essa fortuna.

Recordo-me com nostalgia da minha perceção de miúdo desse Mundo Nicolino que tanto me fascinava. Tinha uma aura mística, um certo secretismo, só alguns lhe pertenciam. Era um mundo de homens de barba rija, cheio de rituais e símbolos. Ou, pelo menos, era assim que eu o via. As Festas, nessa altura, ainda eram bem mais pequenas e fechadas do que são hoje, havia vivências diferentes, mas a sua essência era a mesma. Por exemplo, nesses tempos da minha infância, a duas, três semanas do Pinheiro já todos os dias se ouvia o rufar das caixas por Guimarães. Era normal virem pequenos grupos de amigos para a rua ensaiar os toques, mas atenção, não se podia! Se a Comissão os apanhasse mandava-os parar, podiam até rasgar-lhes as peles das caixas, mas todos os dias se ouviam caixas e bombos! Umas vezes mesmo ali na nossa rua, outras vezes apenas lá ao longe. Era o som anunciador das Festas! Eu, como pirralho que não podia tocar, pegava nas baquetas do meu irmão e ensaiava eu próprio os toques, tocando na cama para não fazer barulho e, aqui e ali, lá tocava mesmo na caixa do meu irmão, até ouvir alguém lá em casa berrar-me para parar. Devia ser um barulho ensurdecedor pois duvido que nessa altura soubesse efetivamente os toques!

 

Recordo-me também de ver o meu irmão surgir-me pela primeira vez trajado. Tinha eu 9 anos e ele acabava de entrar para a Comissão de 1991 como 2º Vogal da Academia. Foi para mim um pronuncio do que eu iria fazer quando chegasse a minha idade, o meu momento de poder dar o meu contributo às Festas, de escrever a minha história nas Nicolinas.

Mais tarde, em 1994, tinha eu apenas 12 anos, entrei para o Liceu para o 7º ano e recordo-me de ir com a minha mãe “lá cima aos Carvalhos” comprar a minha caixa, de a colocar ao pescoço e de imediato começar a tocar nela pela primeira vez! Recordo-me de me sentir crescido, afinal já era Nicolino!

Nesse mesmo ano fui pela primeira vez ao Pinheiro. Recordar esse meu primeiro Jantar de Pinheiro é hoje um misto de emoções. Se por um lado vêm a mim todas as emoções de alegria, amizade e camaradagem que nesse dia experienciei, sempre que o recordar, agora, nascerá em mim a saudade desse bom amigo que demasiado cedo nos deixou. Foste Tu Zé Alexandre que me convidaste a ir contigo ao jantar das tuas irmãs e foi ao Teu lado que vivi o meu primeiro Pinheiro. Um abraço Zé Alexandre, onde quer que estejas não esquecerei – aliás, não esqueceremos – a tua alegria!

Recordo-me ainda, já no 9º ano, de termos todas as nossas caixas em casa da “avó do Nuninho”, que ficava ali mesmo ao lado do liceu, e que nesse ano foi a nossa oficina de afinação das caixas! Estavam todas ao sol e sempre que tínhamos um tempinho livre lá íamos nós esticar um pouco mais as cordas. Nesse ano, as nossas caixas “pareciam tarolas”!!

Falar de Nicolinas, para mim, é isto! É recordar histórias, reviver amizades, compartilhar momentos e, sem dúvida, que aquelas que mais me ficaram marcadas são as vividas no seio da Comissão de Festas Nicolinas 1999! Como se percebe pelas minhas palavras, integrar a Comissão era um sonho de tenra idade e se a expectativa era grande a realidade foi ainda melhor!

Essa história começa quando me dirigi ao Jardim do Carmo, numa noite já fria de finais de Setembro, ou início de Outubro, para a “eleição” da Comissão. Sim, nesse ano ainda não havia uma verdadeira eleição. Quem sabia a data, por intermedio de amigos de Comissões anteriores, aparecia ao Jardim do Carmo e apresentava-se ao Presidente. Nunca eramos mais de 10, por isso, quem aparecesse era eleito. Quis a sorte que já conhecesse praticamente todos os elementos da Comissão, alguns eram grandes amigos, outros conhecidos, outros assim assim, mas hoje são todos meus irmãos Nicolinos. Essa fraternidade fica para a vida e é, provavelmente, a maior dádiva que as Nicolinas me proporcionaram.

Recordo cheio de saudade os peditórios. Verdadeiras epopeias! À boleia, debaixo de chuva, sol, frio, calor, lá íamos nós, miúdos de 17 anos percorrer cada recanto do nosso concelho, e não só, também íamos a Fafe e Felgueiras, tocando às campainhas, batendo porta a porta: “Boa tarde, nós somos da Comissão de Festas Nicolinas e andamos a fazer o tradicional peditório em honra a S. Nicolau”. Foi das experiências mais enriquecedoras da minha vida. Tive oportunidade de ver pessoas de todos os credos e feitios, de ver como viviam ricos e pobres, de conhecer gente boa e gente do pior. Foi nos peditórios que vivemos as maiores brincadeiras, palhaçadas entre nós. Foi nos peditórios que nos aconteceram os episódios mais caricatos e os mais humanos. Lembro-me de um peditório para os lados de Brito, chovia torrencialmente, estávamos encharcados (até os boxers pingavam) e ao pedirmos numa humilde casa, um casal já de alguma idade, de imediato nos abriu a porta, insistiram que entrássemos, deram-nos toalhas para nos limparmos, pão para nos alimentarmos e, claro, um bagaço para aquecermos! Queriam à viva força chamar o seu filho para que nos viesse buscar de carro para nos trazer a Guimarães! A oferta era tentadora, mas tínhamos mesmo que continuar o peditório.

Recordo ainda as reuniões da Comissão durante a semana, em especial aquelas em que estávamos só os 10, descontraídos, a beber um copo, a conversar e que no fim saímos para passar no “batateiro”, a caminho do Telheiro, onde íamos comer uma fêvera com ovo estrelado ou um prego, beber uma cerveja e jogar uma partida de bilhar. Recordo-me de chegar ao Liceu, de manhã bem cedo, depois dessas noites e de os professores carinhosamente virem falar comigo para me aconselharem a descansar melhor. Recordo-me da sua enorme compreensão para connosco. Bem, nem todos o eram, mas a maioria sim.

 

Recordo-me dos ensaios dos toques, nas escolas e na Mumadona. Eram os primeiros momentos de verdadeiro contacto com os estudantes ao serviço da Comissão. Tínhamos que meter respeito, tínhamos que assumir que ali mandávamos nós. Tínhamos essa responsabilidade. Carregávamos o peso de um traje, o peso de uma tradição e sabíamos que a cidade tinha os olhos postos em nós. Nem sempre era fácil, mas olhando hoje para trás foram estes pequenos desafios que nos permitiram crescer tanto em tão pouco tempo.

Recordo-me do cheiro a caruma, logo à alvorada do dia 29 de Novembro. Ver aqueles homens, os lavradores, a cortar o Pinheiro em Aldão e a trazê-lo até ao Campo de S. Mamede provocou-me um arrepio na alma que nunca esquecerei. Era o nosso grande dia! Tínhamos a responsabilidade de erguer o Pinheiro, tínhamos a responsabilidade de “fazer as melhores Festas de Sempre!”, foi para isso que trabalhamos durante dois meses.

Viver o cortejo do Pinheiro dentro de uma Comissão é uma experiência única. Não passamos de miúdos de 17 anos, a correr por entre grupos de homens, mulheres, jovens e crianças, sozinhos a maior parte do tempo, gritando para tentar por algum andamento numa anarquia completa! Lembro-me de ajudar os Bombeiros a meter um homem na ambulância um pouco abaixo do “hospital velho” e de vir com a tocha acesa, a correr à frente da ambulância a desviar as pessoas para que a ambulância passasse e de, nesse momento, só pensar em não cair, pois se caísse a ambulância estava mesmo colada a mim. Não caí e hoje estou aqui a escrever estas memórias.

 

A semana das Festas foi para mim muito diferente do normal, estive hospitalizado do dia 30 de Novembro até ao dia 04 de Dezembro, sai praticamente direto do hospital para as Posses, mas devido à minha condição não podia “dar a mão aos meus irmãos”, nem tão pouco apanhar frio ou saltar para apanhar a Posse. Assisti às primeiras Posses, de capa traçada e depois fui obrigado pelos velhos a ir para a Marisqueira da Rua de Camões, que por uns bons anos foi a sede da ACFN, e por lá fiquei a comer e beber, como manda a lei Nicolina, até a minha Comissão chegar para a Posse da então ainda Tertúlia.

No dia seguinte veio o inesperado, um gesto que sempre irei recordar com gratidão. Estávamos nós a almoçar em casa do Melo, autor do Pregão, quando o Dino, que seria o Ponto do Rui no Pregão dessa tarde, se sentiu maldisposto e disse ao Presidente que não estava capaz de ser o Ponto. O presidente falou com a Comissão e decidiram que seria eu o Ponto nesse dia e, assim, tive a honra de ser Ponto do Rui. Um gesto de todos eles, que traduz o verdadeiro Espírito Nicolino. Um espírito de união, camaradagem, amizade e consideração.

Aliás, este é para mim o maior legado que as Nicolinas me deram, o saber que embora todos nós, os que pertencemos a uma Comissão, sejamos todos muito diferentes uns dos outros, tenhamos idades que vão dos 18 aos 80, tenhamos vivido a Comissão em momentos tão distintos, de formas tão próprias que nos levam a ver e viver as Nicolinas à nossa própria maneira e a olhar a atualidade das Nossas Festas de forma igualmente distinta, todos nós sabemos que podemos contar uns com os outros, que todos trabalhamos no mesmo sentido, no sentido de perpetuar a nossa tradição, no sentido de cada vez mais as Nicolinas serem uma chama bem viva dentro de todos os Nicolinos.

Viva as Nicolinas!

Filinto Eliso,

Da velha França…

Guimarães, 18 de novembro de 2021

Alberto Vaz Guimarães

1º Vogal de Festas, 1999

Sócio nº 33 da ACFN

 

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