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Memórias de um Velho Nicolino, por Zé Diogo Silva

Redação
Sociedade \ segunda-feira, novembro 22, 2021
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O Jornal de Guimarães vai publicar, entre este domingo e sexta-feira, artigos de opinião acerca das Festas Nicolinas escritos por diferentes autores. O segundo fica a cargo de Zé Diogo Silva

O meu primeiro contacto com as Nicolinas surgiu muito cedo. Ainda menino, assistia às Posses na varanda do segundo andar da Pastelaria Clarinha. Na varanda do primeiro andar estava ele: gabardine preta, chapéu preto, cigarrilha no canto da boca e uns papéis na mão com as quadras escritas para aquela noite de celebração Nicolina. O Xico, com a sua forma de falar ao “povo”, atraía facilmente as multidões. Ele corria entre a posse da Clarinha e a posse do “Quim Conas”, onde a “Tertúlia 4 de Dezembro” fazia e celebrava a sua noite Nicolina. O meu encanto pelas Nicolinas é alimentado quando, ainda no auditório da universidade do Minho, ia (com a minha mãe) ver as Danças de São Nicolau. Na altura, felizmente, não havia problemas com os bilhetes.

Ainda miúdo, mas já com algum pêlo na venta, via os meus amigos da escola (7º/8ª ano) a participarem no pinheiro. E eu pedia à minha mãe que me deixasse ir com eles. Contudo (e bem) a minha mãe obrigava-me sempre a ir com ela, e com os amigos dela, jantar à Pensão da Penha, alegando que “são as festas dos estudantes do secundário de Guimarães. Quando lá chegares, participas!”. Que remédio tinha eu: ia para a frente da Casa Faria ver o meu pai a tocar bombo com os amigos. O bombo sempre cheio de sangue e a minha mãe e as suas amigas a dizerem sempre que “Este ano é só bêbedos. O cortejo tem muita distância entre grupos”. Enquanto jovem de 12/13 anos, o meu pinheiro era simplesmente olhar para um cortejo cheio de bêbedos.

Em 2008 aceitei, com imensa naturalidade e com imenso sentido de responsabilidade, o convite para ingressar na comissão de festas. Era o realizar de um sonho. Pedi, como é normal, autorização aos meus pais. A minha mãe prontamente disse que sim. O meu pai obrigou-me a fazer uma série de promessas no sentido de me mostrar que “com grandes feitos, grandes responsabilidades”. Dada a autorização, a minha cabeça só pensava no traje, nos sapatos e em tudo que englobasse a minha entrada para a comissão.

 

Após lá estar dentro, o meu objetivo era ser pregoeiro. Queria muito. Não pela fama, mas sim pela inspiração. Aqueles que um dia viram o Xico recitar, quiseram, todos, ser pregoeiros por uma vez na vida. O meu problema, ou não, é que eu o quis a minha vida toda. E essa vontade permitiu-me ser o escolhido para o ano de 2008. Antes de ir para a cama, todas as noites, preparava leite com mel. Diziam os entendidos nicolinos que fazia bem para limpar da macieira. Assim o fiz, todos os santos dias. Sabia que não me podia faltar a voz. Ao sair dos Trovadores do Cano levava sempre (para o caminho até casa) uma garrafa de água e gomas em forma de tubarão (que certamente já lá estariam há mais de um ano).

A 21 de Novembro saía a deliberação: após dezoito oitavas recitadas (por ambos os finalistas, no salão de cima dos Trovadores do Cano), a hoste nicolina presente decidiu que eu, um dos membros da honrosa comissão de festas, seria a voz de todos os (e as) estudantes de Guimarães. Mais do que cumprir um sonho, era saber que estava a servir Guimarães e as suas gentes.

No dia 5 de dezembro de 2008, dia do Pregão, Guimarães acordou cinzenta. A chuva miúda molhava a calçada do antigo Toural. Eu, que tinha passado a noite na casa minha avó, acordei cedo. Os sinos da torre de São Pedro são o melhor despertador para quem não consegue sair da cama. A ansiedade rapidamente tomou conta de mim. Era o dia do meu pregão. Sempre que o imaginava, não chovia. Aquela chuva preocupava-me e não me deixava sereno nem por um momento.

Como que por milagre, às 15:00 horas, deixou de chover. Após um almoço bem regado na casa do escritor do pregão, São Nicolau ouviu as minhas preces e fez um arranjinho com o São Pedro para que este não estragasse aquele que é, para mim, o dia mais bonito de todas as celebrações nicolinas, profanas ou religiosas.

 

Iniciado o cortejo, todos me perguntavam pela voz. Essa estava bem: mal estavam os nervos. Os coches começavam a reluzir os poucos raios de sol que perfuravam as nuvens cinzentas daquela sexta-feira à tarde. A calçada da rua da muralha, ainda meia molhada, dificultava o andar dos cavalos. Ao chegar à praça em frente ao convento de Santa Clara via toda a minha família lá. Eles, não tanto como eu, estavam felizes e orgulhosos. Ao chegarmos, o meu presidente ofereceu (como era costume) um pregão dourado ao presidente da câmara, na altura o Dr. António Magalhães. Subi as escadarias que as clarissas usavam para fazer os doces e para rezar. Naquele dia era eu que caminhava para o meu “Santo Graal”. Aquela varanda, na qual tinha visto o Jorge Marques, o Pi Rodrigues, o Miguel Mendes e o João Nuno Santoalha, era agora minha.

Lembro-me das cortinas, grossas e vermelhas, que me dificultavam a vista para a multidão que em baixo esperava as minhas palavras. Tentei, como todos, decorar o pregão. Não sei se o disse de cor na varanda do município. Sei apenas que desfrutei e aproveitei ao máximo esse momento. Foi, sem sombra de qualquer dúvida, o dia mais feliz da minha vida.

Já na Torre dos Almadas, o Xico Ribeiro apresentou-me Jaime Sampaio, ilustre nicolino e pregoeiro dos anos 60, que, de forma elogiosa, me disse que “não via um pregoeiro com a tua capacidade e qualidade desde há muitos anos. De tão simpático que era, sabia-o, Jaime Sampaio estava a exagerar nas palavras. Ainda assim, tomei-as como minhas. Eu merecia aquele elogio pois o concretizar daquele sonho foi algo que me “saiu do corpo”.

O meu pregão foi dedicado à minha avó. À chegada ao toural, ela saiu do seu posto de trabalho e foi, toda babada, assistir à última récita do pregão de 2008. Que orgulho senti. A partir daquele dia, senti-me para sempre grato a Guimarães, às suas gentes e a todos os nicolinos. Momentos inigualáveis.

Ser nicolino, mais do que ser estudante para toda a vida, é ser vimaranense. Um vimaranense grato, orgulhoso, sem medo do seu passado e sem medo do seu futuro. Só aqueles que temem o presente podem pensar que o futuro das Nicolinas está ridicularizado ou ultrapassado. As Nicolinas, tal como as suas gentes, são mutáveis. Transformam-se com a sociedade e com o mundo circundante, não se fecham em copas nem se armam em “maçonaria juvenil” para impor regras e costumes que não respeitam o normal funcionamento de uma sociedade democrática e avançada.

O que as Nicolinas e as suas gentes não toleram, nem nunca tolerarão, são ataques feitos à sua integridade e ao seu papel na sociedade. As Nicolinas e os seus costumes sempre foram, ao longo de décadas, sinal de luta e de avanço civilizacional. E agora, como no passado, elas têm o seu papel de demonstrar à atual sociedade que o passado será sempre a sua identidade do futuro.

A todos (e a todas) os nicolinos, desejo, do fundo do meu coração umas boas festas. Que São Nicolau se orgulhe das festas de 2021 e que estas sejam mais um marco histórico na caminhada das Nicolinas por este mundo.

 

Guimarães, 18 de novembro de 2021

Zé Diogo Silva, Secretário/Pregoeiro 2008, Escola Secundária Francisco de Holanda; vice-presidente 2009

Sócio nº 97 da ACFN

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