Sara Barros Leitão é a diretora convidada do Teatro Oficina para 2022
Ao som de We’ll meet again, a canção de Vera Lynn que animava os espíritos dos soldados e do povo britânico durante a Segunda Guerra Mundial, Sara Barros Leitão montou o palco em menos de cinco minutos, como que a antecipar um espetáculo. E a verdade é que a apresentação da proposta que vai nortear o ano da encenadora como diretora artística do Teatro Oficina se desenrolou como uma performance, em que a voz e os movimentos se conjugavam com os adereços que a ladeavam, símbolos do programa desenhado.
A representação do estúdio de som antecipa o podcast Tentativa-Erro, os livros e os cadernos em pilha denunciam a iniciativa Anti-Biblioteca e Anti-Leituras, inspirada nas grandes bibliotecas de livros nunca lidos, e o guarda-roupa como amostra das inúmeras caracterizações que transformam atores em personagens, seja numas jornadas de teatro, numas oficinas de trabalho ou na criação original que está para vir, “Há ir e voltar”, que enquadra a emigração e a produção têxtil dos anos 60, a 22 de setembro. E todo esse trabalho terá como epicentro o Espaço Oficina, na Avenida D. João IV.
“Tem todas as potencialidades do mundo para sermos o que quisermos”, disse a atriz de 31 anos, no espaço sob o Centro Comercial Villa. “É underground. Está literalmente um piso abaixo da rua. Pode ser um espaço de vanguarda e de liberdade. Podemos preparar aqui as mais belas conversas e inícios de qualquer coisa. O Espaço Oficina é um sítio central onde tudo vai acontecer”.
Sem direção e corpo de atores fixo, a companhia tem sobretudo embarcado em coproduções que incluem o Gangue de Guimarães, um mapa de todos os atores e encenadores relacionados com Guimarães, e vai ter, de 2022 em diante, um diretor artístico a cada ano. Ao oficializar a sua incursão pelo Teatro Oficina, a artista portuense enquadrou o projeto em construção no lema “O ano do nosso desconfinamento”, subjacente da ambição de superar a pandemia e a “linguagem muito bélica”, de combate a um “inimigo invisível”, omnipresente desde 2020.
“Queremos muito voltar a qualquer coisa: dar beijos na boca, abraçarmo-nos. Desafiava-vos a pensar nesta música [We’ll meet again] de forma mais literal. É bom estamos aqui de novo após dois anos tão estranhos, com uma paragem abrupta nas nossas vidas”, adiantou.
Esse manifesto de reencontro apareceu transcrito num pequeno jornal que anuncia o que está por vir: nas páginas, encontram-se o Tentativa-Erro, um podcast quinzenal como “eixo central do pensamento artístico” do Teatro Oficina para 2022, ou o Assalto ao Arquivo, um “projeto de tratamento, catalogação, recuperação e conservação do arquivo e do espólio do Teatro Oficina”, envolvendo “folhas de sala, cartazes, textos, documentos pessoais, fotografias, figurinos ou pedaços de cenários”.
Já o Anti-Biblioteca e Anti-Leituras é uma ideia que provém das inúmeras bibliotecas com prateleiras e prateleiras de livros nunca lidos, adaptada ao teatro: o Espaço Oficina vai reunir textos dramáticos, livros técnicos ou ensaios. Para quem “gosta de ler teatro”, mas “não suporta a ideia de o fazer sozinho”, haverá um “grupo de leitura de teatro em voz alta” a funcionar de 15 em 15 dias, com “mantas, almofadas, chá, biscoitos, vinho quente e texto de teatro”: é o Anti-Leituras. “Qualquer pessoa pode participar e contaminar isto”, frisou.
O algodão e a emigração: os dois eixos com Guimarães no “centro do mundo”
A encenadora portuense propõe ainda duas jornadas de teatro - a primeira para estudantes e jovens profissionais e a segunda para profissionais -, o reatamento das oficinas, com três turmas – uma entre os oito e 12 anos, outra entre os 12 e os 18 e uma terceira acima dos 18 – e ainda uma criação original: “Há ir e voltar”, com estreia a 22 de setembro. “Será um espetáculo para três atrizes. Guimarães é uma cidade onde não há mar, mas conhece o significado de saída e de regresso, por duas rotas: a rota do algodão e a rota de emigração”, descreveu.
Por ora, o espetáculo é “só uma ideia” que “pode correr mal”, mas Sara Barros Leitão já sabe que a inspiração para a escrita virá das “pessoas-memória” que viveram a indústria têxtil vimaranense que, nos anos 60, produzia atoalhados, jogos de cama e até as fardas para os soldados deslocados para a Guerra Colonial, ou a emigração para um outro país.
“É difícil encontrar alguém em Guimarães que não tenha memória de alguém da sua família emigrado. Falaremos sobre as fronteiras, que não são mais do que uma construção social, e o outro”, acrescentou.
Apesar de ser possível uma digressão, a obra “vai estar três semanas em cena” no Espaço Oficina, um prazo fora do normal para um espetáculo que acaba de subir aos palcos, sublinhou.
Pela primeira vez diretora artística de uma companhia de teatro, Sara Barros Leitão frisou que o Espaço Oficina vai ser mais um espaço de pensamento do que de programação formal, tendo prometido a “coisa mais simples do mundo”: “Fazer teatro”.
“Depois de inventado o teatro, é difícil fazer melhor. O Teatro Oficina é uma companhia profissional de alcance nacional. Tudo vai acontecer neste espaço como epicentro de ação, quase como as trincheiras de uma futura revolução”, comparou, antes de expressar os agradecimentos à equipa da Oficina pelo apoio que tem recebido desde 03 de janeiro, data em que começou a trabalhar.
Oficina espera ano “pleno de atividade” no renovado Espaço
O anúncio de Sara Barros Leitão como diretora do Teatro Oficina para 2022 concluiu um processo iniciado há um ano, quando a Oficina convidou a atriz para diretora artística, e que, pelo meio, contemplou a remodelação do espaço contíguo à Avenida D. João IV.
“Este espaço foi muito intervencionado, fruto do muito uso de muitas pessoas a passarem por cá. Fizemo-la no ano passado para estar pronta a partir deste ano. Está pronto para que se desenvolvam uma série de atividades do Teatro Oficina”, explicou a diretora artística da cooperativa municipal, Fátima Alçada.
Quanto a Sara Barros Leitão, Fátima Alçada considerou-a a “melhor comandante” para a “aventura de 2022”, que se deseja “plena de atividade”, com o Espaço Oficina a “ganhar outra centralidade na relação com a cidade e com as pessoas”.
Já o vereador municipal para a Cultura e presidente da Oficina, Paulo Lopes Silva, disse ser um “privilégio” contar com Sara Barros Leitão para 2022, até “pela emoção que coloca” no que faz – deu o exemplo da própria conferência de imprensa.
“Ela falou sobre criação num espaço onde podemos criar sem a pressão da novidade e da estreia. Com o Espaço Oficina, teremos tempo para não estarmos permanentemente à espera da emergência e da novidade”, sublinhou.
A propósito dos 10 anos da Capital Europeia da Cultura e da concretização do “potencial sonhado” pela cidade, o responsável frisou que esse desígnio tem de ser “permanentemente concretizado”, com “um projeto necessariamente inacabado”, apegado “à raiz e à criação”.