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A pobreza: do espetáculo à indiferença

Francisco Brito
Opinião \ sábado, outubro 15, 2022
© Direitos reservados
Num país com cerca de dois milhões de pobres e em que uma família pobre demora cinco gerações para sair da pobreza, a nossa relação com as pessoas pobres e com a pobreza tem de ser repensada.

Nos últimos dias assistiu-se em Lisboa a uma polémica em torno de uma marcha/piquenique, destinada a pessoas de “maior vulnerabilidade social” que, após diversos protestos, acabou por ser cancelada. A iniciativa, a ter tido lugar, poderia constituir um espectáculo pouco edificante que, na minha opinião, pouco contribuiria para uma maior sensibilização da sociedade sobre esta matéria.

A exposição pública da pobreza não é um fenómeno isolado ou exclusivo da capital. É algo que acontece recorrentemente em grande parte das cidades do país, quando se distribuem cabazes alimentares ou quando se realiza a cerimónia de “entrega de chaves” das habitações sociais. Guimarães não é excepção e, num passado recente, promoveu este tipo de cerimónias onde os beneficiários das habitações recebem em público uma chave que poderia ser entregue normalmente pelos serviços da Câmara.

Se é verdade que a entrega de habitação a quem dela precisa é uma das funções do Estado e das autarquias e que a obtenção desse apoio não constitui nenhuma indignidade, também é certo que não existe qualquer necessidade de celebrar a ocasião numa cerimónia pública. A este tipo de eventos, promovidos de norte a sul do país por Câmaras de todas as cores políticas, junta-se a distribuição de cabazes com a presença de políticos e, não raras vezes, da comunicação social. Ambas as situações são pouco edificantes não para quem delas beneficia, mas para quem através delas se promove.

Num país com cerca de dois milhões de pobres e em que uma família pobre demora cinco gerações para sair da pobreza, a nossa relação com as pessoas pobres e com a pobreza tem de ser repensada.

Durante a ditadura, de acordo com Maria Filomena Mónica, as famílias mais abastadas tinham o “seu” pobre, que ajudavam num registo que hoje é inaceitável. Em tempos mais recuados, a situação era idêntica e coabitava com algumas práticas que atualmente, seriam consideradas bizarras (um desses costumes consistia em deixar em testamento uma esmola a cada pobre que acompanhasse um funeral, usando a santidade associada à pobreza e à caridade como um instrumento da salvação da alma do testador).

Dessa relação hierárquica, instrumental e intrusiva com os pobres, passou-se para uma indiferença e desresponsabilização em relação à pobreza que se vê e sente no nosso dia-a-dia. Hoje, quando alguém se depara com uma pessoa vulnerável e a precisar de auxílio imediato, rapidamente tranquiliza a sua consciência remetendo para o Estado, para a Igreja e para certas associações a resolução de um problema que, na verdade, é de todos nós.

Se é inegável que o país conheceu uma assinalável progressão em matéria de apoios sociais nas últimas décadas, hoje, tal como ontem, continua a ser pobre não só quem pede, mas também quem trabalha. E a replicação desta condição social e humana nas mesmas famílias e nos seus descendentes é, na esmagadora maioria dos casos, uma inevitabilidade.

A pobreza não pode ser escondida nem ignorada. Mas lidar com esta situação não passa nem pelo espetáculo, nem pela indiferença. E transcende a assistência que sendo um elemento de inestimável valia não resolve a parte estrutural do problema. Diminuir a pobreza só será possível com uma profunda mudança do paradigma económico e social, algo que o país parece não querer.

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