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Governo do Mundo em Seco

Francisco Brito
Opinião \ sábado, julho 24, 2021
© Direitos reservados
“Deixai falar a gente, já que não é obrigação do que fala que em tudo acerte” – Manuel José de Paiva in “Governo do Mundo em Seco”

No âmbito da minha profissão (livreiro alfarrabista) já tive a sorte de ter tido contacto com alguns “livros pioneiros”, designação simplista para classificar aquelas obras que são as primeiras a tratar um determinado assunto ou a apresentarem pela primeira vez certas características até então desconhecidas.

Ao contrário do que se possa imaginar nem sempre um “livro pioneiro” é conhecido do grande público (ou até de um público especializado). Tal facto resulta de diversas circunstâncias. Ou a publicação não teve o impacto esperado no seu tempo, tornando-se por isso pouco relevante, ou o curso dos séculos fez com que com que a obra caísse no esquecimento (ainda que essa mesma obra possa estar na génese de um determinado estilo, género, acontecimento ou disciplina).  

Por vezes, em contexto de trabalho, o primeiro contacto com um livro antigo que desconhecemos (e que bem pode ser um “livro pioneiro”!) não é o suficiente para fazer despertar a curiosidade que a obra merece. A necessidade de avançar rapidamente para o seu estudo e descrição faz com que, após folhearmos algumas páginas, sejamos obrigados a recorrer a bibliografia especializada para que possamos saber de imediato o que temos entre mãos.

Contudo, nem sempre esta ordem de trabalhos é seguida. Quando abri pela primeira vez um livro de Manuel José de Paiva (1709 – 1760?) intitulado “Governo do Mundo em Seco…” fiquei desde logo fascinado pelo próprio título (que transcrevo em linguagem atualizada e quase na íntegra): “Governo do Mundo em Seco, Palavras embrulhadas em papéis, ou escritório da razão, exposto no progresso de um diálogo, em que são interlocutores um letrado, o seu escrevente e as mais pessoas que se propuserem…”.

A originalidade do título fez-me prestar uma atenção especial ao livro onde, de imediato, encontrei algumas frases me cativaram. E ao ler um pouco da obra percebi estar perante um autor com uma qualidade acima da média, não só pelo nível de argumentação usado mas também pela capacidade de criar imagens poderosas através da sua escrita.

 

 

Para compreender melhor o trabalho acabei por recorrer ao magnífico “Diccionario Bibliographico Portuguez” (publicado em 1856 por Innocêncio Francisco da Silva), onde encontrei a seguinte descrição: “Esta obra (…) contém boas doutrinas morais, políticas e econômicas, expostas em estilo joco-sério; aí são censurados com graça muitos abusos do tempo em matérias civis religiosas, etc. Entre outros trechos notáveis parece-me digna de menção especial uma espécie de dissertação ou alegação jurídica em que o autor combate com razões eficazes a pena de morte, que segundo ele não cabe na alçada dos homens, e é por outra parte insuficiente e imprópria para atingir os fins com que a pretendem justificar os seus defensores (…) ”.

Possivelmente devido aos “trechos notáveis” que continha, o livro terá tido alguma popularidade e conheceu pelo menos 3 edições entre 1748 e 1751. Terá sido o primeiro livro em Portugal a contestar a pena de morte (nos termos acima mencionados). Ainda assim, apesar de ter conhecido várias edições, pode dizer-se que este trabalho de Manuel José de Paiva acabou por cair no esquecimento.

Em 1761, treze anos após a publicação do “Governo do Mundo em Seco”, seria lançado um outro “livro pioneiro”, intitulado “Dei Delitti e Delle Pene” da autoria do jurista italiano Cesare Beccaria (1738 – 1794), uma obra que teve um grande impacto em todo o mundo por defender a abolição da pena de morte e que hoje ainda é conhecida por quem se interessa por Direito Penal.

Curiosamente, volvidos mais de dois séculos e meio sobre a publicação destas obras, alguns laivos de populismo penal e censório e outros atentados às nossas liberdades ecoam na sociedade.

Regressar a estes livros (ou pelo menos saber que existiram) é sempre um bom pretexto para conhecer melhor os debates e as lutas do passado que, em certa medida, estão na génese de direitos e liberdades que hoje consideramos banais.

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