skipToMain
ASSINAR
LOJA ONLINE
SIGA-NOS
Guimarães
04 julho 2025
tempo
18˚C
Nuvens dispersas
Min: 17
Max: 19
20,376 km/h

As coisas caem para o lado em que se inclinam

Francisco Brito
Opinião \ terça-feira, julho 01, 2025
© Direitos reservados
As coisas estão inclinadas para um mundo cada vez mais dominado pela tecnologia, pela visibilidade das injustiças e pela incerteza da importância de aspectos que julgávamos centrais nas nossas vidas.

O título deste artigo é retirado de um romance espanhol. Não vale a pena referir qual é nem o contexto. Importa apenas fazer notar que reflete o senso comum e, provavelmente, alguma lei da física.

As coisas estão inclinadas para um mundo cada vez mais dominado pela tecnologia, pela visibilidade das injustiças e pela incerteza da importância de aspectos que julgávamos centrais nas nossas vidas, como a liberdade, a democracia e a cultura (mas que na verdade não correspondem a uma tendência natural do Homem). Nas regiões mais desenvolvidas do mundo importam-se migrantes para executar as tarefas que os cidadãos de pleno direito já não querem fazer e, ao mesmo tempo, desenvolvem-se máquinas capazes de num futuro próximo as virem a executar. As pessoas (justamente) querem-se libertar do trabalho. Mas o processo é complexo e gradual.

Há cerca de 30 anos Agostinho da Silva escrevia o seguinte: “A reconquista do Éden comportaria para o homem a libertação do trabalho [mas] a posse de ócio pressupõe uma perfeição de domínio sobre a natureza que se não poderá conseguir à custa do sacrifício de muitas gerações, como o ócio de Atenas se alcançou à custa do sacrifício dos escravos; a solução, porém, não se me afigura impossível (…) se deixarmos de ver na máquina a inimiga que tem de vencer para a olharmos como a auxiliar imprescindível (…)”.

Vivemos um tempo intermédio, onde o escravo (o migrante, o trabalhador precário, etc) convive com o advento da máquina (que brevemente o irá substituir). Neste momento, os melhores exemplos do lado para onde as coisas se inclinam podem ser encontrados a Oriente. Na China ou em Singapura vamos encontrar trechos deste novo mundo onde máquinas, homens, precariedade e bem-estar constroem uma nova sociedade. Ambos os países são governados por um partido único (são ditaduras) e, nos últimos anos, conseguiram avanços notáveis no nível de vida dos seus cidadãos (só a China retirou 800 milhões de pessoas da pobreza) e no que ao desenvolvimento científico e tecnológico diz respeito.

Singapura apresenta-se como um caso bastante curioso e talvez de mais fácil análise. Não é uma democracia (há fortes condicionamentos à liberdade de expressão e a outros direitos fundamentais). É assumidamente um país multiétnico e multirreligioso. Tem uma economia de mercado vibrante, um dos PIB mais altos do mundo (e o 2º mais alto em paridade do poder de compra), uma indústria financeira gigantesca (que em grande parte sustenta o país), um sistema de habitação público extraordinário (80% das casas são do Estado), um dos melhores sistemas de saúde do mundo e provavelmente o sistema de tratamento de águas mais avançado do planeta. Neste país que, volto a lembrar, não é uma democracia, podemos encontrar robots equipados com IA a fazer fisioterapia a idosos, arranha céus fabulosos, belíssimos jardins verticais, pleno emprego, uma das mais altas esperanças médias de vida do mundo e mais de 2 milhões de migrantes (que ali podem residir apenas por 2 ou 3 anos, sem direito a cidadania) a executarem os trabalhos que os cidadãos de Singapura já não estão dispostos a fazer e que as máquinas ainda não fazem.

A imagem de uma maioria de cidadãos felizes ao lado de trabalhadores braçais presumivelmente infelizes e de robots-fisioterapeutas (indiferentes?) mostra-nos o lado para onde as coisas estão inclinadas. E, ao que parece, para onde irão cair.

Podcast Jornal de Guimarães
Episódio mais recente: Guimarães em Debate #124