Barómetros de civismo nervoso
É aquele estacionamento em segunda fila a estorvar um monte de gente, muitas vezes por capricho e com lugares por perto. A falta de paciência para esperar que um semáforo se torne verde – os arranques loucos que se seguem. A velocidade exagerada. O encosto ao carro da frente para o apressar ou esse que não anda porque decidiu sair à rua para estorvar. A buzinadela hostil e ameaçadora. A ausência de pisca que deixa outros condutores na expectativa. O olhar para o carro do lado em tom provocador numa ultrapassagem. O praguejar enraivecido. A manobra habilidosa para encurtar caminho ou se antecipar à ocupação de um lugar sem qualquer sentido de comunidade ou respeito pelo próximo. A labreguice parola de não saber ter calma. De não saber estar nem viver em sociedade. Aquele dedo do meio levantado ao mínimo desagrado. O esbracejar irritado que liberta a fera no interior do cubículo do pequeno veículo de quatro rodas, protegido pela barreira metálica da chapa amolgada que naquela altura lhe parece uma muralha impenetrável.
E enerva-se mesmo. Demasiadas vezes. Até parece que precisa de se enervar para sobreviver. De libertar qualquer coisa. Talvez seja infeliz se tão facilmente se entrega aos nervos. Saudosista sei que é. Que ocasionalmente transporta martelos na mala do carro também.
Talvez por ser latino não precise de muito para se irritar. Mas se não é na condução é na bola. E vive aquilo como se fosse alguma coisa de importante – entrega o bem-estar emocional a algo tão pouco relevante como o futebol. E por ter as prioridades tão trocadas cada vez se enerva mais ao volante – consigo próprio, pela indisciplina da sua vida espalhada nas suas fracas decisões. Exalta-se e revolta-se como se aquilo resolvesse os problemas do mundo espelhados na sua própria existência. E se não é ao volante nem na bola é no café, durante a conversa sobre política. Deixa-se levar e enervar por uma primária vontade de se afirmar que o obriga a discutir sem encontrar razão nem paz em ninguém. E por ficar tão perdido e desnorteado acaba por lidar cada vez pior com o interesse no futebol, depositando aí a esperança de salvar o que já perdeu, assobiando e injuriando meio mundo durante um jogo. Destila toda a raiva que consegue encontrar numa descompensação a que chama de paixão, e depois acaba a insultar alguém que discordou de si no café, antes de se fazer à estrada embriagado para conduzir até casa.
E repete, repete, repete.
Este indivíduo é o leitor. Se não se encontrou em nenhum momento deste texto é um caso raro de calma. Deslocado da realidade onde habita. Dou-lhe os parabéns por isso.