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O complexo do salvador branco

Ruthia Portelinha
Opinião \ sábado, novembro 13, 2021
© Direitos reservados
“Até o leão contar a história, o caçador será sempre o herói” diz um provérbio africano. Quando pensamos em África, qual é a primeira imagem que nos assalta?

Uma extensa savana com animais selvagens no seu habitat sob um pôr do sol incrível? Trajes coloridos e tradições ancestrais? Ou crianças subnutridas, mal vestidas e com escasso acesso à educação?

Todos sabemos que a pobreza existe em África, mas também existe em Portugal e nos Estados Unidos. Que sentido faz romantizar a pobreza africana, através do cinema e das redes sociais?

As narrativas do cinema contemporâneo estão eivadas de estereótipos. Recorde-se a longa metragem África Minha (1985),  que se passa no Quénia, ou Machine Gun Preacher (2011), sobre um pregador que salva crianças no Sudão. Ambos os dramas têm protagonistas brancos no continente africano, representado como um destino perigoso, mas exuberante, com um povo amável e algo ingénuo.

 

 

Os investigadores chamam a isto de complexo do salvador branco, crença enraizada, ainda que inconscientemente, de que os ocidentais devem ensinar “os outros”. Ou seja, o termo é usado quando alguém acredita que pode resgatar pessoas - africanas, asiáticas ou de outros azimutes - de uma situação de vulnerabilidade, por causa da cor da sua pele ou da sua situação económica.

Os influencers tendem a perpetuar estes clichés nas redes sociais, como se África fosse um continente homogéneo e todos os seus habitantes necessitassem de ajuda externa. Virou moda posar com crianças pobres, mas não se divulga o trabalho dos ativistas locais, que realmente impacta nas comunidades.

Também raras vezes alguém se questiona sobre o consentimento (ou falta dele) para fotografar. Antes pelo contrário, divulgar imagens de crianças africanas é celebrado, enquanto capturar imagens de miúdos do nosso bairro é invasão de privacidade. Seja no Uganda, na Síria ou em São Tomé e Príncipe; voluntários e turistas usam crianças como objetos de inspiração ou destaques de uma viagem. Muitas vezes, sem qualquer contextualização.

 

 

Sugiro dois perfis no Instagram que abordam este assunto: No White Saviours (que dá voz a verdades incómodas, ainda que não concorde com tudo o que lá se publica) e Barbie Savior, criado por duas jovens que foram voluntárias em África e passaram a ter um olhar crítico sobre a sua própria atuação e a de outros jovens privilegiados.

Antes de marcar uma experiência de volunturismo* no estrangeiro, seja crítico, pergunte-se o que tem para oferecer à comunidade, perceba se não está a alimentar a indústria dos orfanatos. Não seja o tipo de voluntário-turista que só mostra a miséria, partilhe também as riquezas – culturais, naturais e etnográficas – do destino que escolheu. E antes de partilhar a imagem de uma criança, pergunte-se “se fosse meu filho, o que eu acharia disto?”

África tem 54 países, uma diversidade linguística assombrosa que supera os 2000 idiomas (sem contar com os dialetos) e milhares de grupos étnicos, com crenças, tradições e hábitos alimentares próprios. Isso sim merece ser divulgado.

*turismo orientado para o voluntariado, com objectivos lucrativos

Ruthia Portelinha | Blog O Berço do Mundo

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