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O criador e a criatura

Francisco Brito
Opinião \ segunda-feira, junho 26, 2023
© Direitos reservados
A disputa entre Putin e Prigozhin, isto é, entre o criador e a criatura, será sem dúvida um episódio determinante para o futuro da Rússia e para o rumo que a guerra na Ucrânia irá tomar.

O último fim-de-semana foi marcado pela revolta de Prigozhin e do grupo Wagner na Rússia. Todos os interessados puderam assistir quase em directo ao avanço dos mercenários e aos mais variados comentários sobre esta situação. Mas o que hoje (25.06) se sabe sobre este assunto é ainda pouco. Sabemos que Prigozhin passou meses a criticar e a insultar Shoigu, que terá planeado esta rebelião durante algumas semanas, que tomou ou algumas cidades importantes em poucas horas, que foi acusado pelo Kremlin de traição, que fez uma coluna militar avançar em direcção a Moscovo, que viu uma acção formal ser preparada pelo Procurador Geral da Rússia e que finalmente terá chegado a um acordo com Putin, tendo sido amnistiado.

O movimento teve, em certa medida, as características de um pronunciamento militar clássico. Os militares do grupo Wagner tomaram tranquilamente Rostov e dirigiram-se a Moscovo sem grande oposição do exército regular, tendo apenas enfrentado algumas barricadas e ataques aéreos ocasionais. Esta inacção das Forças Armadas da Rússia (FAR) parece indiciar que Prigozhin contava com o apoio de algumas das altas patentes das FAR ou, pelo menos, teria a garantia da sua passividade ou aquiescência. Só assim se explica a facilidade com que os mercenários avançaram no território russo. Este cenário, muito embora possa parecer estranho, foi relativamente comum em diversas mudanças de regime ao longo da história contemporânea. Ainda assim convirá referir que não é muito vulgar ver um mercenário como protagonista deste tipo de acontecimentos.

O lado insólito desta situação deu origem a uma série de teorias cuja validade só poderá vir a ser comprovada com o tempo. A explicação mais absurda para o sucedido é a de que se tratou de uma encenação. Nenhum líder de uma nação com uma tradição institucional forte (como é o caso da Rússia) aceita sujeitar-se a um teatro onde não só é dado a entender aos parceiros externos que há um descontrolo das suas forças armadas, mas também é posta em causa a paz social do seu país. Mais credível parece ser a tese que aponta para Prigozhin como instrumento ou aliado de forças mais poderosas (oligarcas, altas patentes do FSB e das FAR e de certas facções do Kremlin) e esta acção como uma forma de forçar o regime a fazer algumas mudanças. Só assim se explica o sucedido. Não me surpreenderia que o apoio a Prigozhin tivesse partido de certos sectores das FAR. Por regra os militares agem por patriotismo e sentido de dever, mas, não raras vezes, questões relacionadas com o decurso de uma determinada guerra, com promoções, com salários, com ambições pessoais (ou de classe) e com outras reivindicações mais prosaicas são motivo suficiente para iniciar ou apoiar rebeliões, revoluções ou simples mudança de actores políticos.

Se Putin ceder às exigências públicas de Prigozhin (demissão de Shoigu e Gerazimov) ou nada fizer sairá claramente humilhado desta situação e dificilmente terá condições de liderar a Rússia por muito tempo. Se não ceder e conseguir identificar e punir os supostos aliados de Prigozhin, a sua posição, ainda que bastante afectada pelos últimos acontecimentos, poderá não ser posta em causa num futuro próximo.

Neste momento as dúvidas são mais do que as certezas. Mas há algumas considerações que podem ser feitas e alguns dados que devem ser tidos em conta. A Ucrânia deverá tentar explorar este momento de debilidade, mas terá que estar atenta às alterações decorrentes dos últimos acontecimentos (nomeadamente à suposta presença de mercenários do grupo Wagner na Bielorrússia e às suas futuras movimentações). As declarações de Prigozhin sobre a baixa moral e más condições das tropas russas coincidem em grande parte com as informações que, ao longo do tempo, foram veiculadas pelos ucranianos e por alguns serviços secretos ocidentais e este é um elemento que as Forças Armadas da Ucrânia podem capitalizar a seu favor. Cada vez que a Rússia ameaça com o uso de armas nucleares táticas ou considera sabotar instalações nucleares, apenas demonstra a sua fraqueza e o seu desespero. Se a estas duas fragilidades somarmos o receio de uma crise interna poderemos estar perante um cenário catastrófico, onde o medo será um factor determinante na tomada de decisões.  

A disputa entre Putin e Prigozhin, isto é, entre o criador e a criatura, será sem dúvida um episódio determinante para o futuro da Rússia e para o rumo que a guerra na Ucrânia irá tomar.

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