O difícil exercício da Liberdade
Vivemos o 25 de Abril de uma forma romantizada, quase cinematográfica. A celebração, o dia da Liberdade, com todos na rua a empunhar cravos, unidos num grito contra a ditadura, é muito inspiradora e bonita. As narrativas construídas têm mais peso que os próprios factos em si. A história articulada e repetida torna-se a única versão, e é apreendida por todos como uma verdade incondicional. Se, por um lado, a narrativa romântica e naïf que temos do 25 de Abril alimenta o sonho, por outro é também uma versão opressiva e incompleta do ponto de vista crítico e de liberdade de expressão.
Em 2004, enquanto estudante universitária em Coimbra, fiz um trabalho académico sobre os 30 anos do 25 de Abril. O desafio era abordar um ponto de vista nunca explorado. Escrevi sobre o que no Estado Novo funcionava melhor do que em democracia. Nesse ano, o INE lançou a obra Um retrato estatístico que aborda a evolução do país no período democrático por oposição ao Estado Novo. Surpreendam-se, mas áreas há em que houve retrocessos no período democrático. Fiz um trabalho de mera explanação de dados estatísticos, sustentados com declarações na primeira pessoa que corroboravam esses dados. Reprovei.
Em conversa, o professor disse não me ter reprovado por o trabalho estar mal feito, mas porque, enquanto jornalista, não poderia nunca fazer a apologia do Estado Novo, pois cabia-me o dever ético e moral de preservar a democracia. Percebi o seu ponto de vista. Não concordei na altura, e continuo a não concordar 20 anos depois. Embrulhar a censura no argumento moral não a torna aceitável.
Impõe-se a narrativa de que o Estado Novo foi o período mais negro da história de Portugal e de que o 25 de Abril foi a solução para tudo. Quem disser o contrário é fascista. Ora, o que os factos nos mostram é que o Estado Novo teve muitas políticas públicas eficazes e de cujos efeitos ainda hoje beneficiamos, e que o período imediatamente após o 25 de abril foi um tempo muito difícil na História de Portugal. E dizê-lo não é fazer apologia do Estado Novo, nem ser contra os ideais democráticos. Não podemos falar do Estado Novo sem falar da ditadura nacional, ou da instabilidade da 1.ª República. Não podemos falar do 25 de Abril sem falar do PREC e do 25 de Novembro. Ficarmo-nos pela versão romantizada da Revolução dos Cravos é redutor da nossa capacidade crítica e evolutiva enquanto cidadãos e enquanto democracia e nação. De nada nos serve o passado se não soubermos aprender com ele. Para esse exercício, impõe-se uma visão crítica e límpida sobre os factos. Abraçar a Liberdade é um exercício difícil que implica estar dispostos a aceitar que há outras versões e visões e que merecem referência na narrativa coletiva.
A censura imposta pela narrativa dominante sobre o 25 de Abril e o Estado Novo é responsável pelo descontentamento de uma franja da sociedade que não se vê representada e que encontra, em movimentos ideológicos mais radicais, uma forma de trazer à tona esses ressentimentos. A única forma de lidar com estes é pelo diálogo racional e aberto no espaço público, algo que os ditos “tolerantes” têm rejeitado violentamente, mantendo a ideia de que é aceitável censurar quem pensa diferente. Abraçar a Liberdade é também fazer as pazes com o passado.
Cumprir Abril não é impor uma visão única e uniformizada, isso é ditadura. Cumprir Abril é aceitar que os diferentes pontos de vista são respeitados e, tanto quanto possível, integrados na regulamentação da sociedade por parte do Estado, conquanto não atentem contra direitos fundamentais e liberdades individuais. O dia 25 de Abril de 1974 acendeu uma luz, no entanto, permanecemos incapazes de ver com clareza, cativos que estamos de uma narrativa que perpetua a censura e nos mantém reféns de uma ditadura que deveria ter terminado há 50 anos. Citando Manuel A. Pina, calma é apenas um pouco tarde. Vamos ainda a tempo de reescrever a narrativa, ousemos querer a verdadeira Liberdade.