Que comece a romaria...
Está pronta a lampreia... pois bem, se está pronta a lampreia, tanta lampreia comamos nós, que em quatro batalhões o estômago se nos divida”, escreveu Camilo Castelo Branco na crónica “Um episódio em Leça”, publicada no Jornal O Nacional (1849), pois bem, eis-nos chegados à época da lampreia.
Época em que muitos amantes desta requintada iguaria, dão início a uma romaria gastronómica que só acaba em meados de abril. A lampreia é um ciclóstomo de água doce, muito procurado por conceituados gastrónomos e outros apreciadores. Ela brilha nas mesas dos mais afamados restaurantes, que mantêm a secular tradição da sua confeção, atraindo numerosos fiéis num ritual comensal, pois a lampreia é cada vez mais um sinónimo de confraternização.
Não há como negar, no caso deste ciclóstomo, ou se ama ou se detesta, não há meio termo nesta relação, mas, quando se ama, é um caso de amor mesmo a sério. É um daqueles amores que não se consegue explicar, levando quem realmente gosta, a esperar ansiosamente todo o ano pela chegada da época própria em que pode deleitar-se com tão rico (também no preço) manjar. Quando esta chega, há restaurantes prediletos a visitar, por vezes já com mesa marcada de um ano para o outro, noutros casos, há quem tenha mais de um restaurante predileto, nesses casos tem de se fazer um sacrifício, seguir o roteiro e fazer uma visita a cada um e comprovar-se se a confeção continua boa de ano para ano. Tentações há que não vale a pena resistir, é contranatura.
Em Portugal, em especial no Minho, onde no rio Minho, Cávado e Lima, por esta altura, há uma intensa atividade na faina deste peixe, a lampreia é confecionada sobretudo em arroz de lampreia, com uma confeção muito próxima da cabidela, ou à bordalesa, uma espécie de guisado, normalmente acompanhado de arroz e pão torrado, esta receita teve as suas origem na França, mais precisamente na região de Bordéus, daí a designação de “bordalesa”. Há restaurantes no entanto, que a confecionam de escabeche, acompanhada de batata cozinha.
Quanto a mim, estou como Camilo, pode ser cozinhada de qualquer maneira, o importante é que seja bem confecionada, em quantidade suficiente para satisfazer o meu palato, com tão delicioso pitéu, então se for acompanhada com um bom vinho do Douro ou Tejo, é a harmonização perfeita. Suspiro pela lampreia do Gaveto, sonho com a lampreia do Carvalheira e vou ao Florêncio acalmar a minha ciclóstima ansiedade.
Escreveu o poeta e gastrónomo António Manuel Couto Viana, no seu livro “Por horas de comidas e bebidas – crónicas gastronómicas, o seguinte: “Já a correnteza das águas que jorram da vizinha Espanha se enfeitam com o aparato das estacas e redes, para prenderem, nas suas malhas, noite adiante, o fugidio ciclóstomo, a tentar disfarçar-se aos rés dos seixos do leito; o chupa-pedras tão apreciada por mim, quando de cabidela, afogado no arroz malandrinho, embebido no seu sangue espesso e escuro (…) Com que gula a mastigo eu, em mesa que ma apresente opípara no arroz do tacho, em grossos toros aromáticos, ou à bordalesa, ou de escabeche, que nestas três artes se mantém ela tentadora e sápida”. A lampreia é, sem dúvida alguma, um dos mais importantes ex-libris gastronómicos da cozinha tradicional minhota.