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Shakespeare, nosso contemporâneo

Francesca Rayner
Opinião \ sábado, setembro 25, 2021
© Direitos reservados
Shakespeare continua a ser representado porque não é didático e dá voz a personagens muito diferentes. Assim os criadores encontram as suas próprias motivações para encenar.

O próximo mês de Outubro é marcado pela estreia de duas peças baseadas na dramaturgia de William Shakespeare. Nos dias 8 e 9 de Outubro, Amarelo Silvestre e Teatro Oficina trazem para o Grande Auditório do Centro Cultural Vila Flor ½ Kilo de Carne: na verdade não sei porque ando tão triste.

Este subtítulo não é mais do que a primeira frase de O Mercador de Veneza, na qual Shakespeare vocifera contra o anti-semitismo e a intolerância religiosa. A mesma descreve o ódio dos mercadores cristãos para com o judeu Shylock e o modo como as humilhações por ele sofridas o levam a querer cortar um pedaço de carne perto do coração do seu inimigo António. Como afirmam os criadores deste espetáculo, este “fará refletir os nossos preconceitos, abalar as nossas convicções e baralhar os nossos sentidos”. A peça foi classificada originalmente como uma comédia. Contudo, o destino trágico de Shylock assombra um final feliz, tornando difícil a encenação da peça como uma comédia especialmente após os eventos do Holocausto. Por estas razões e a da cada vez maior intolerância vivida nos dias de hoje, vale a pena revisitar a peça.

No Teatro São João no Porto, a temporada que celebra os 100 anos da reconstrução do teatro começa com um Lear encenado por Nuno Cardoso. O título Lear em vez do habitual Rei Lear indica que o foco do espetáculo será mais no homem do que no Rei. É uma das tragédias mais duras de Shakespeare. A insensatez do Rei de 80 anos em passar o seu reino para duas das três filhas que não o amam é punida pela rejeição destas e a eventual loucura do seu pai no meio de uma tempestade. Embora haja uma reconciliação do rei com a sua filha amada, Cordélia, ambos morrem no final. Deixam no poder o Edgar que acaba a peça reconhecendo as grandes perdas da geração mais velha e a incapacidade da geração jovem em seguir os seus passos. O pai de Edgar, Gloucester, perde os seus olhos num gesto terrível de violência antes da sua reconciliação com o filho e a sua morte. Este Lear promete examinar a violência que existe no seio das famílias e o tratamento dos idosos na nossa sociedade. Inclui também comentários mordazes sobre o poder e a justiça e um reconhecimento tardio à necessidade de uma sociedade cuidar dos mais fracos e dos mais pobres.

Como bem ilustram estes dois espetáculos, Shakespeare sobrevive nos palcos portugueses porque consegue falar de questões atuais e polémicas. Ou seja, não porque Shakespeare seja universal e fale para nós através dos tempos. Na verdade, a linguagem do dramaturgo não é dos nossos tempos. A organização das sociedades e até as experiências corporais são completamente diferentes. Shakespeare continua a ser representado porque não é didático e dá voz a personagens muito diferentes. Assim os criadores encontram as suas próprias motivações para encenar Shakespeare e os públicos fazem destes espetáculos o que quiserem. Há uma liberdade e uma abertura nos textos, muitos dos quais foram buscar histórias que já existiram, que atrai performers e espetadores para pensar em conjunto as transformações que caracterizam a nossa sociedade.

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