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Do negativo à digitalização: memória de Guimarães constrói-se em fotografia

Bruno José Ferreira
Cultura \ terça-feira, julho 04, 2023
© Direitos reservados
Entre o Arquivo Municipal e a Sociedade Martins Sarmento, processa-se a digitalização e parte-se à descoberta com acervos em formatos obsoletos Em mente, há um repositório fotográfico digital único.

Joaquim Pereira, Ivone Sousa e Sandra Jesus pincelam ao de leve os pequenos pedaços de vidro. De entre o pó, apagam-se as marcas do tempo para desvendar o que o cliché de vidro transporta do passado até à atualidade. Numa outra sala, Marcela Silva desenvolve outra tarefa: os negativos, muitos deles já a cores, deixam sair as formas pelo scanner para percorrerem cabos acima o caminho da digitalização. Alguns conjuntos de fotos estão datados, em envelopes, outros nem por isso. Numa das fotos, reconhece-se rapidamente o Toural, noutra o bigode de D. Duarte de Bragança é percetível na película de 35mm; os rolos que aqui há uns anos eram usuais, mas que agora são quase que apenas fragmentos de memória.

Prossegue o trabalho de “tratamento técnico arquivístico” do acervo adquirido em 2022 à casa fotográfica Foto Beleza por parte do Arquivo Municipal Alfredo Pimenta (AMAP), onde moram mais de 40 mil imagens referentes a Guimarães. “Ainda não conseguimos quantificar, mas serão mais de 10 mil negativos”, dá conta Alexandra Marques, diretora do AMAP. Para trás ficou o tratamento, já finalizado, do acervo da casa fotográfica Foto Simão, adquirida em 2020. Aqui o número de fotografias é preciso: 9.620 fotografias. “Está totalmente disponível e acessível, em formato digital, através do nosso site”. Os 9.620 negativos “datados entre 1940 e 2000” estão “todos identificados, descritos, digitalizados e acondicionados”, desdobrando-se também em ficheiros digitais.

Na Rua João Lopes de Faria, está o maior arquivo fotográfico de Guimarães, no Arquivo Municipal de Guimarães, criado em junho de 1931 com funções de arquivo distrital, recebendo o nome Arquivo Municipal Alfredo Pimenta em homenagem àquele que foi seu diretor por sensivelmente duas décadas. Para além dos acervos já referenciados, da Foto Simão e da Foto Beleza, há no AMAP alguns negativos adquiridos à Foto Cine-Alegre, casa fotográfica do Porto, e arquivos de acervos pessoais, como o de Joaquim Fernandes, onde constam fotografias da Marcha Gualteriana, entre outros.

 

“Fulcrais para a construção da memória da cidade”

Não é possível dizer qual será a fotografia mais antiga existente. “Datar fotografias é um desafio”, diz Alexandra Marques. “As mais antigas serão da década de 1930”, sugere, explicando que muitas vezes “não há informações claras ou registos precisos disponíveis”. Aquilo que, à partida, seria um trabalho repetitivo e quase que mecanizado de tratamento de fotos transforma-se numa descoberta a cada cliché de vidro ou a cada fotograma. A sensibilidade do arquivista é, portanto, peça chave na catalogação das fotografias. Pormenores como as placas no topo das lojas, as matrículas ou o vestuário são essenciais para que se possa balizar a época de cada uma das fotografias e assim “construir a memória” vimaranense.

“As fotografias ajudam-nos a construir uma narrativa visual da história da cidade, do quotidiano das suas gentes, das mudanças ocorridas na paisagem urbana, na arquitetura, no desenvolvimento das instituições, nas festividades e nos modos de vida das pessoas”, sustenta a diretora do Arquivo, sublinhando que “estas aquisições de acervos são fulcrais para a construção da memória da cidade e das instituições”. Uma missão contínua, eternamente inacabada, que, dada a importância referida, faz com haja no Arquivo o sentimento de “dever de continuar a guardar e preservar este tipo de informação, para que outros possam analisar, estudar e interpretar”.

 

“O nosso patrono [Martins Sarmento] foi pioneiro: os investigadores situam-nos como sendo precursor da fotografia enquanto instrumento científico”Salomé Duarte, historiadora da Sociedade Martins Sarmento

 

A menos de 300 metros, em linha reta, há outro arquivo importante da cidade de Guimarães. “A fotografia sempre teve um lugar especial na Sociedade Martins Sarmento”, revela a historiadora Salomé Duarte. De luvas brancas, com um toque milimétrico e preciso, mostra algumas das mais antigas fotografias captadas em território vimaranense, com século e meio de existência. É difícil quantificar o número de fotografias: “Uns milhares, entre positivos, negativos, em vidro e agora imagens digitais”, destaca a historiadora licenciada em antropologia e com formação em museologia, biblioteca e documentação. Neste caso, o raio de ação deslocaliza-se do coração da cidade - “são poucas as fotografias que nos chegaram do centro de Guimarães”, informa - para a zona norte do concelho; mais propriamente de Briteiros, onde Martins Sarmento explorou – e fotografou – a citânia local.

Martins Sarmento foi “precursor”, afirma. E explica porquê: “A coleção de fotografia sempre teve um lugar especial na Sociedade Martins Sarmento (SMS): o nosso patrono foi pioneiro, os investigadores situam-no como sendo precursor na fotografia enquanto instrumento científico de registo e questionamento na arqueologia”. É uma característica que confere ao espólio da SMS uma “riqueza” diferenciada e única no país, graças à “aventura” e “descoberta” de Sarmento da fotografia. Uma descoberta “longa e penosa”, como o próprio deixou relatado nos cadernos que dedicou exclusivamente à fotografia. “A nosso fototeca tem essa riqueza. Trata-se de um fundo bastante recuado no tempo, poucas décadas depois de a fotografia surgir”, assegura Salomé Duarte. Por estes dias vai-se fazendo uma “revisão de catálogos” no espólio da SMS, um processo moroso que passa também pela digitalização e “implica a revisão de vários elementos”. O objetivo passa pela possibilidade de “disponibilizar às pessoas”, como já acontece online, um “processo de construção e crescimento”, até porque “a fototeca vai sempre crescendo, com a doação de outros acervos”.

 

A ideia é “ir aumentando através das mais variadas formas de aquisição”

Voltamos à casa de partida, o AMAP.  “Para já, não há mais acervos em vista”, ressalva Alexandra Marques. “Não quer dizer que não os haja”, acrescenta enquanto aponta que “a ideia é ir aumentando, através das mais variadas formas de aquisição”, como aconteceu, por exemplo, com A Muralha – Associação de Guimarães para a Defesa do Património, cujo acervo, “maioritariamente clichés de vidro”, está no Arquivo “por via de um protocolo de depósito” estabelecido há quase uma década, em 2014.

“Valorizar, preservar, enriquecer e promover o património fotográfico faz parte dos objetivos” do AMAP, por forma a contribuir para a “preservação da identidade e para o enriquecimento da memória coletiva”. Nesse sentido, esta estrutura “está disponível para trabalhar em conjunto” com as mais variadas instituições. “Pensar num repositório fotográfico digital único é algo que já está em mente”, conclui a diretora do Arquivo. Mas, isso “requer recursos financeiros, recursos humanos adequados, e parcerias com instituições que custodiam este tipo de acervos e com a própria comunidade”.

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