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A arte de caminhar

Ruthia Portelinha
Opinião \ sábado, novembro 12, 2022
© Direitos reservados
Uma forma vai ganhando definição, entre o denso nevoeiro. Os arcos da ponte D. Zameiro surgem, um a um, sobre o Ave que toca a sua canção de ninar.

São sete horas e nada perturba esta manhã de outubro, à exceção dos meus passos sobre a calçada. Quando paro para registar o momento, resta o chilrear dos pássaros e o grasnar de um pato, à distância.

Ainda não se veem outros peregrinos neste ponto que, outrora, fazia a ligação da estrada romana conhecida por Via Veteris, até Esposende. Ao longo do dia, cruzar-me-ei com vários, todos estrangeiros, todos com passadas distintas. O brasileiro Jefferson anda depressa, parece até apressado. Porventura (ainda) não aprendeu que o melhor do Caminho, ou de qualquer viagem, é o que se passa entre a partida e a chegada. Ou, talvez, não conseguiu ainda despir a sua pele de empresário atarefado.

Assalta-me o poema de António Machado - caminhante, são as tuas pegadas / o caminho e nada mais / caminhante, não há caminho, / se faz caminho ao andar – que enaltece o processo. Mas contenho o meu impulso de lho recitar, pois cada um tem o seu Caminho interior para trilhar.

No polo oposto, a alemã Klaudia toma um ritmo lento. É a sua terceira peregrinação até Santiago de Compostela e, com dores de garganta e costas doridas, sabe por experiência que é preciso ouvir o corpo. “Caminhar é uma tarefa lenta. É das coisas mais radicais que podemos fazer” – escreveu Erling Kagge, na sua obra A arte de caminhar.

A cerca de cinco quilómetros por hora, tudo se transforma. Quando se preenche um dia, a seguir a outro e outro, apenas a caminhar, jornadas inesperadas abrem-se no coração. Quando nos apercebemos, estamos em pleno transe introspetivo.

Voltando a Kagge. O norueguês afirma também que aquele que caminha é mais feliz. Colocar um passo a seguir a outro, simplesmente. Quem melhor para refletir sobre esta arte do que um explorador com tantos quilómetros nos pés, que pisou o Polo Norte, o Polo Sul e o pico do Evereste?

Na sua reflexão sobre a dicotomia objetiva/abstrata de caminhar, o livro destaca uma tradição dos inuítes, habitantes das regiões árticas. Quando alguém está zangado, a ponto de  mal conseguir controlar os seus sentimentos, deve sair de casa e caminhar a direito até se libertar da ira. Nessa altura, deve marcar o local onde se libertou dela, espetando um pau na neve. Que sensato é medir a força da nossa ira, caminhando para longe daquilo que nos altera a mente.

Talvez esse seja um dos apelos do(s) Caminho(s) de Santiago. Não se trata de fé religiosa, pelo menos no meu caso, talvez uma espécie de espiritualismo laico, uma forma de largar lentamente a ira, o cansaço, as ninharias que nos monopolizam os dias. Colocar um pé em frente ao outro pode abrir espaço para aclarar ideias, desatar nó cegos, ter coragem para nos colocarmos perguntas incómodas.

Um passo de cada vez, um quilómetro de cada vez, um dia de cada vez.

Ruthia Portelinha, viajante e autora do blog O Berço do Mundo

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