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A medicina vista pelo lado do doente

Prof. Dr. José Cotter
Opinião \ domingo, outubro 31, 2021
© Direitos reservados
"Covid-19 - diário de um sobrevivente", de Daniel Sampaio, é um texto que nos leva a pensar no que nos pode acontecer se cairmos um dia na cama de um hospital.

Um dos livros mais marcantes que já li tinha por autor José Cardoso Pires e intitulava-se “De profundis valsa lenta”. Naquele texto, muito bem escrito, o autor narrava a sua experiência antes durante e após um acidente vascular cerebral (vulgo AVC) de que foi acometido, conjugando o que se lembrava com as informações que colheu posteriormente e que serviram para completar o período de que não se lembrava. Esse livro, para mim médico de profissão e para aqueles que ajudo a formar, possibilitou transportar-nos para o lado do doente e refletir sobre muitas coisas que se passam durante os episódios patológicos de que as pessoas são acometidas, procurando manter o sentido crítico que permitiu corrigir determinadas posturas. Enfim, um livro notável!

Vem isto a propósito de um outro livro recentemente publicado, com o título “Covid-19 – Diário de um Sobrevivente”, da autoria de Daniel Sampaio. Este médico, psiquiatra e Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Medicina de Lisboa, foi acometido de um quadro gravíssimo de infeção por covid-19, que o obrigou a longo internamento hospitalar, durante o qual chegou a estar em coma induzido com ventilação assistida durante quinze dias.

Conforme descreve neste excelente livro, a luta pela vida, a perseverança, a qualidade assistencial das equipas clínicas do Serviço Nacional de Saúde (SNS) que o trataram e a humanização foram o segredo para a sua salvação. Nele, o autor transmite uma homenagem aos profissionais do SNS, briosos profissionais, muito desadequadamente remunerados, trabalhando geralmente em condições extremamente difíceis, mas com uma disponibilidade e abnegação inquestionáveis.

Mas essencialmente descreve, com uma visão do lado do doente, um interessantíssimo diário que começa com o início da doença e termina com a sua alta clínica. Trata-se de um livro interessantíssimo para qualquer cidadão, quanto mais não seja (além de muitos outros fatores) pelo facto das pessoas definitivamente entenderem a imensa gravidade (e risco de mortalidade) que a infeção por covid-19 pode transportar a quem dela padece.

Trata-se de um livro que todos os profissionais de saúde deveriam ler. Por muito ocupados que sejam, pois consegue ler-se numa tarde. Numa linguagem simples, o texto assume uma importante vertente pedagógica, com críticas pertinentes diretas ou nas entrelinhas, além de aspetos emocionais que por vezes são comoventes. Um texto que nos leva a pensar no que nos pode acontecer se cairmos um dia na cama de um hospital.

Mas também para os profissionais de saúde obriga a refletir nos cuidados que devem ter ao estar
permanentemente “em frente” de um ser fragilizado, que é o doente, que em todo o momento precisa de uma palavra ou de um gesto de conforto. Textos destes deveriam também ser abordados no ensino universitário de Medicina, onde a sensibilização para a humanização não é uma vertente deveras importante, ao contrário do que deveria acontecer.

Curiosamente, após se ler o livro e se refletir, percebe-se melhor porque se está a assistir cada vez mais a uma deserção de profissionais do SNS, transferindo-se para o Sistema Privado, fazendo com que o primeiro definhe cada vez mais, pois se não bastasse encontrar-se em falência técnica perante a inoperância dos políticos, apresenta quadros persistentemente subdimensionados e deficientes condições de trabalho, o que o tornam pouco apelativo.

De forma mais grave agora, já não só pelos profissionais seniores mais experientes, mas também pelas gerações mais jovens. Com péssimas repercussões uma vez que isso se repercute numa imensa quebra de qualidade formativa e assistencial, que se vem a traduzir em maior escala sobre os mais desfavorecidos que apenas aí podem acorrer. Em suma, aconselho vivamente a leitura. Uma lição para todos nós, de um grande Professor!

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