A metáfora de A-má
Pondo de lado a hiperatividade consumista, que explica muita da ansiedade sazonal, reflitamos sobre o espírito simbólico do Natal. No calendário de todas as fés há um período introspetivo, para refletir, cultivar a compaixão, elevar-se espiritualmente: Páscoa, Natal, o Dia do Perdão judaico, o Vesak ou Festa das Luzes budista, Eid al-Adha ou Festa do Sacrifício muçulmana, o Kumbha Mela hindu…
A essência destes momentos festivos reside na generosidade e na bondade, valores que não são monopólio de uma religião, mas se querem universais. Quanto mais viajo, mais constato que há pessoas bondosas em todos os pontos do planeta, independentemente da fé que professam. O contrário também acontece.
Num momento em que se agride fisicamente manifestantes anti-racismo e a Europa encerra fronteiras a refugiados de múltiplas nacionalidades e crenças, quero recordar uma visita ao templo de A-má, o mais antigo de Macau.
O pequeno e gracioso templo, guardado por dois leões de pedra que impedem o mal de entrar, tem vários pavilhões, com telhados verdes de pontas arrebitadas, e pátios que se estendem colina acima. Paira no ar um cheiro forte, a incenso, e o murmúrio de orações.
Quando foi erguido este templo a A-má, a imperatriz do céu, durante a dinastia Ming, Macau não passava de uma insignificante aldeola, cujos habitantes tanto se dedicavam à pesca como à pirataria.
Também chamada de Tin Hau, Mazu ou Matsu, a deusa taoista, protetora de pescadores e marinheiros, é muito venerada no sul da China. Ela aguarda os visitantes num nicho de seda vermelha, bordada a fio de ouro, perante uma mesa de oferendas. Nada de muito valioso; um pouco de fruta fresca, flores e muito incenso.
A-má tem várias divindades vizinhas no recinto - estátuas populares, imagens taoistas e budas bonacheirões - numa mistura singular de filosofia confucionista, taoísmo, budismo, e muitas outras tradições profanas. No mundo maniqueísta de hoje, em que só parece existir preto e branco, acho este sincretismo religioso admirável.
A casa de A-má é perfeitamente ecuménica: esse palavrão de origem grega que começou por ser aplicado numa perspetiva cultural, depois assumiu uma conotação política e que hoje se assume como um processo de aproximação entre crenças religiosas. As suas lições são preciosas em qualquer época do ano, mas talvez os nossos corações estejam mais recetivos à sua metáfora de tolerância neste período natalício.
Na última crónica do ano, faço votos por um 2022 com viagens seguras e coração (sempre) aberto para acolher o outro na sua diferença.
Ruthia Portelinha, autora do blog O Berço do Mundo.