Vão-se os jovens, ficam os “cheganos”
Cai-me um vídeo numa destas redes dominadas pelo acriticismo e alienação. É de um simulador de jornalista. Um “marketeiro” político travestido de comunicador, como agora se diz. Nele, a personagem deambula pelo Martim Moniz, em Lisboa, deixando um rasto de gente de tez escura atrás de si. O vídeo é feito ao jeito de chega para lá, essa novel ideologia que agora domina as mentes, uma imensidão delas jovens que dizem ter agora uma referência. É um vídeo manifestamente racista e devia merecer a abertura de um inquérito pelo Ministério Público que, por qualquer razão que nos vai escapando, não vê problemas neste tipo de mensagem. E o que pretende este vídeo? Afirmar que Portugal está a ser invadido por estrangeiros de tez escura. O imbecil que faz esta filmagem nem se dá conta de que o Rossio de Lisboa é, desde o século XVI, um dos locais do mundo por onde mais pretos passaram e que, ainda hoje, por lá ter havido um posto de comércio escravo, ainda se mantém como ponto de encontro de negritude lisboeta. O vídeo é ignorância pura levada à conta de informação. O silêncio à sua volta parece inocente, mas não é.
Se o palerma filmasse suecos e ingleses em Albufeira teria o mesmo efeito da presença de estrangeiros. Teriam, é claro, tez clara e muitos ainda seriam altos e loiros, essa casta superior tão apreciada em Portugal com uma outra qualidade produtora de vénias e aquiescência: recebem boas reformas pagas pelos seus países. O dinheirinho entra sem o país ter feito nada para isso. Deste modo, só por existirem, essa gente do Norte adquire estatuto superlativo neste Portugal que gosta de se enganar. Estes bretões e nórdicos não produzem nada. Apenas consomem. Além de sol e praia, têm empregados portugueses baratos, comem em bons restaurantes pagando um décimo do que pagariam nos seus países, usufruem de um sistema de saúde gratuito, expressam-se nas suas línguas e marimbam-se para o português.
Veja-se, todavia, a contradição: enquanto gente do Brasil, Tailândia, Vietname ou Bangladesh vem produzir, fazendo o trabalho sujo ou braçal a que os nativos portugueses já não se dispõem, assim engrossando as entradas na Segurança Social e nas receitas do Orçamento Geral do Estado com os seus impostos, nórdicos e bretões nada contribuem, nem para o IRS nem para a Segurança Social. O Chega para lá ideológico é sempre contra quem trabalha, nunca contra quem tem vida ociosa.
Está a escapar à ideologia “chegana” um dado muito importante: enquanto recebemos gente humilde para fazer o trabalho sujo que mais nenhum português faz, 30% dos jovens nascidos em Portugal estão emigrados no estrangeiro. Quer dizer que a malta nova, com as suas boas qualificações financiadas pelo país, opta por ir-se à procura de um melhor destino. Sem dúvida que, ao irem-se, empobrecem-nos. Desaparecem as mulheres em idade fértil e a possibilidade de alargamento da base da pirâmide etária. A nossa tragédia é que não conseguimos colocar os “cheganos” em nenhum país. Ninguém os quer. Nem para arrumar o lixo. Por outro lado, na sua ignorância, julgam-se superiores aos trabalhadores imigrantes em Portugal.
João Gonçalves é um exemplo de jovem enriquecendo outros países que não o seu. Terminado o seu doutoramento em Estudos de Comunicação na Universidade do Minho em 2019, arrumou trapinhos com a namorada e zarpou para os Países Baixos, onde reside. Teve filhos que ficam na fronteira de serem portugueses e holandeses. Trabalha na Erasmus University Rotterdam, instituição onde é investigador e professor. Há um ano um seu projeto de investigação sobre Inteligência Artificial recebeu um “grant” de 280 mil euros. Aqui em Portugal, os investigadores mendigam vinténs e recebem de universidades propostas de trabalho pagas a 19 euros por hora o que, pasme-se, tem doutorados a aceitar.
Pois, no final de 2023, João recebeu mais uma boa notícia: ele é “cientista holandês” do ano. Assim mesmo, apesar de João ser de Braga. A Holanda celebra-se com um português. Percebe-se por aqui como Portugal está a perder uma luta surda nos países da Comunidade Europeia. Todos querem os melhores, exceto Portugal. Enquanto países avançados procuram atrair gente com futuro, Portugal recebe reformados do norte europeu cujo ativo são as reformas. Gente com passado como está bom de ver. Pelo caminho ficamos com a inteligência “chegana”. Parece que escolhemos sempre a face trágica da vida.