O poder dos machões e o patriarcalismo feminista
Na madrugada de 23 de agosto, Carla Fonseca, professora do Ensino Básico nas Caldas das Taipas, foi assassinada com dois tiros pelo ex-marido. É mais uma mulher morta a lamentar por um ato hediondo e bárbaro. Naquele ato típico de querer sair mártir da história, o homem suicidou-se. Este quadro de violência doméstica é recorrente. Mata-se a mulher supostamente porque se gosta muito dela e, de seguida, pratica-se o suicídio para deixar uma mensagem de vitimização no ar. Espera ser o coitado da história. Mas o ex-marido suicida não é vítima de coisa alguma. Ele é apenas um abominável assassino, de um tipo de tragédia previsível e cujas estratégias de combate, ao contrário do que se pensa, esbarram numa realidade machista, construída sob alicerces muito sólidos e profundos. Este tipo de atitude não se julga a violar leis. Estes homens não se sentem fora da lei. O macho assassino da esposa, suicida de seguida, sente-se sim, alguém superior à lei. Corrige-se: ele não se “sente”. No seu íntimo ele vive acima da lei. Como persiste esta realidade que autoriza superioridade ao macho?
Observa-se que as reuniões escolares de fim de ano são maioritariamente participadas por mães. São elas a linha da frente da educação. Seria então de esperar que o machismo já estivesse atirado às antanhas pelas suas vítimas. Uma história privada, recentemente ocorrida numa família, mostra como a realidade patriarcal se impõe: apesar da esmerada educação em favor da igualdade, o filho, jovem de 17 anos, deu uma chapada à namorada porque esta vestia-se deixando partes do corpo à mostra. A mãe do rapaz entrou em choque. Perante tantas conversas em família sobre paridade, igualdade, direitos iguais, como tal era possível? A mãe vislumbrou-se: lembrava-se, por exemplo, de mandar a filha tapar os ombros e o decote quando vai à missa. É só um exemplo.
O patriarcalismo vislumbra-se nas atitudes dos homens mas instala-se com a conivência de todos, mulheres inclusive. Persiste nas sociedades latinas como grude. É invisível na ação e detetável apenas nas consequências. Passa despercebido porque habitual, rotineiro, usual e aceitável a todo o tempo. Não é discutível. Às vezes “até é giro” e ela faz o que quer. Por isso se diz que é estrutural. Estrutural é tudo o que se faz ou diz por força do hábito inscrito nos corpos, nos comportamentos e nas ações tidas naturais. Estrutural é o ponto de rebuçado em que não se reflete no que se diz ou faz sem porque as repercussões não interessam.
O patriarca é o agente detentor do poder num sistema social e persiste porque as estruturas desse mesmo sistema social estão sustentadas no poder dos homens, reproduzindo-a em permanência nos seus variados aspetos. Desde o berço, na separação das cores da roupa, na segmentação dos brinquedos, nas mensagens do “possível” aos rapazes e “impossível” às raparigas, na divisão sexual das tarefas do lar, na exposição do corpo, na limitação do espaço do lar para elas, na expansiva liberdade da rua para eles. Nesta estabelecida di-visão social (uma dupla visão) fundada na biologia e transposta para o social, subjaz o poder de uma das partes, exatamente aquele que apresenta no seu corpo algo próximo de um ceptro: o falo!
Para se manifestar na forma poderosa, ainda que ao lado da rainha Letícia, Luis Rubiales, presidente da Federação Espanhola de Futebol, agarrou os genitais agitando-os, uma clara invocação do detentor do ceptro nessa desonrada manifestação da posse do símbolo do poder. Não se ficou por aí. Mais tarde, num ato protocolar mediático, cumprimentando futebolistas espanholas campeãs do mundo, autorizou-se a imobilizar, com as duas mãos, a cabeça da jogadora campeã Jenni Hermoso e a beijá-la na boca. Posto perante um mundo de críticas, partiu para uma narrativa demonstradora dos instintos do poder consuetudinário doado pelo patriarcalismo. Primeiro que era normal beijar uma jogadora – objetivamente subordinada, na boa. Depois que fora autorizado a tal, apesar de desmentido pela beijada. Resistiu a tudo e a todos e posto e perante um mar de críticas, inclusive demissões na Federação, ameaçou usar a instituição para levar toda a gente a tribunal. Por fim, a instância máxima que organiza o futebol, a FIFA, suspendeu-o, retirando-o de cena. Em nenhum momento o “machão” se deu conta do ridículo em que caíra. Na realidade o seu caldo de existência patriarcal autorizava-o a tudo, procedendo segundo uma cultura superior à lei.
Despir a sociedade desse poder patriarcal impõe atitudes de mudança que não se cingem à ação punitiva judicial. Parece eficaz mas toda a lei é reativa e quando age, Inês é morta. O fio condutor do poder patriarcal tem de ser travado a todo o momento, a começar no berço e numa radical mudança de atitudes nessa transposição da divisão biológica para uma divisão da vida em sociedade. E, desengane-se quem ainda não percebeu – principalmente nas redes digitais: o patriarcalismo persiste ajudado e sustentado por muitas mulheres. Também são essas a dever a vida de Carla Fonseca.