A infantilização dos aprendizes
Um fenómeno, que denomino de infantilização, introduziu-se na sociedade portuguesa. A meninice é longa e a solidez adulta tardia. Ressalvando as exceções, cada vez em menor número, a infantilização consiste, por um lado, na exígua autoexigência de responsabilidade e ausência de conexão com a organização do mundo – apesar da panóplia das tecnologias de conexão com o mesmo mundo. Por outro lado, a tolerância paternal da atitude dos estados de meninice substitui, a todo o tempo, a assunção da responsabilidade adulta, cada vez mais demorada em rapazes e raparigas feitas “crianças”.
O fenómeno não chegou de supetão. Foi gradual. Mas rápido. Arrisca-se aqui a hipótese de tal estar correlacionado com o alargamento da classe média e da sua melhorada condição de vida pós-adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE). O risco estende-se à possibilidade das figurações de elite se terem alargado: ter “mamã” e “papá” em vez de “mãe” e “pai”, ou chamar pela “vó” e o “vô” substituindo os populares diminutivos “avozinha” e “avozinho” são alguns comprovativos mais íntimos dessa alteração de hábitos confundida com mudança de estatuto social.
Pequenos rituais de transição etária desapareceram. Mastigar é para mais tarde. A sopa passada já não é para a infantil e desdentada condição. A carne picada é iguaria e as papas Nestum e Cerelac animam eternamente a criança que há no jovem adulto. Ao prato, a comida tem de chegar limpa de gordura, espinhas, ossos, defeitos. Neste tempo, alonga-se a meninice e cultiva-se a inocência. A cultura jovem segue traços pueris e toda a potencialidade tecnológica reverte mais para alienação e menos para a descoberta. Vídeos e fotos deslizam horas a fio no scroll, mas nada fica na mente. Tudo é híbrido, misturado, indefinido. Fugaz! Acredita-se no que aparece porque apareceu no ecrã. O falso tem tanto valor de atenção quanto o verdadeiro. Não há crítica, nem exigência de fonte. A função mediadora desaparece. Onde leste isso? Ah! Já não me lembro! Mas sei que vi!
Inclui-se aqui também uma mudança substantiva na transformação da criança dependente em pessoa autónoma, processo no qual o “indivisível indivíduo” toma consciência de si apartado dos elementos culturais de relação próxima com as características do “Outro”. O infante fecha-se em círculo de reduzidas relações familiares e não experimenta o diverso, o diferente, as relações criadoras, fornecedoras de compreensão e tolerância, propiciadoras de experiências gratuitas, graciosamente vividas e incorporadas como um tipo de aprendizagem invisível, mas estruturante. Esconde-se nestas hipóteses a ausência de “associação” que outrora enriquecia e, atualmente, terá empobrecido os jovens, retirando-lhes capacidade de colher diferentes ferramentas humanas para enfrentar o mundo.
Algumas modas recentemente passadas foram confirmando essa mudança. Há uns anos esteve na moda a ideia do filho sobredotado. A espécie “adiantado mental” banalizou-se nas conversas de café. Sendo certo que o hábito desapareceu, é também verdade que, de tanto afirmada, mais do que a expetativa, revelava o desejo dos progenitores terem um génio em casa. E eram muitos os futuros génios! E o que temos hoje? Casos em que de tanto se projetar futuro sem cuidar de uma estruturação educativa de cultura ampla, coloca, por exemplo, alunos do primeiro ano do ensino superior a, de repente, desatarem a chorar na sala de aulas. Percebe-se existir uma insuficiência que, à falta de melhor, designa-se aqui por “estruturas de adultez”. Está lá a idade, mas não reside lá a malha mental congruente.
Por exemplo: é agora comum, em instituições do Ensino Superior, aparecerem pais querendo saber dos filhos com mais de 18 anos. É algo que constrange os responsáveis académicos, impedidos pela lei da Proteção de Dados de falarem com outrem, um progenitor que seja, sobre os elementos de um estudante, filho que seja. Recentemente viram-se casos ainda mais prementes: o de pais que, em tempo de estágio curricular de um estudante, impõem-se acompanhar o filho de 21 ou 22 anos à entrevista na empresa onde vão prolongar a aprendizagem. Mostra-se uma contradição: em vez da entrevista ao estudante, são os pais a entrevistar as empresas. Querem saber se a empresa merece a presença do seu filho. No fundo, são os pais a prolongar a ingenuidade acriançada. Abafam e limitam. Os filhos, claro. Mas deve haver algo de positivo nisto tudo. É provável que resida aqui uma oportunidade para o Ensino Superior: abrir um curso para ensinar pais a tornarem os seus filhos pessoas adultas!