Cães de Pedra: Genealogia de um crime lesa-concelho de proporções bíblicas
Humilhar a soberania da vertical iniciativa privada representa, ipso facto, o unilateral rasgar do mandato político constitucional. Sendo facto público e notório, prescinde-se de reconhecimento ope judicis. O princípio da economia processual impede a prática de atos inúteis: carece de sentido fazer julgamento quando a condenação se impõe, em mecânica lógica causa-efeito, pela confissão integral e sem reservas feita pela voz pública, isto, após imersão nos factos culposos fumegantes.
Já em pretérito artigo, cristalizava um pessoal imperativo categórico: pugnar ativamente, com sentido de urgência, pela criação de uma genuína DOMUSCRACIA: converter o metro quadrado em metro cívico.
É minha firme convicção: não há democracia substancial sem cidadania plena, sendo inerente a esta existir chão firme para se caminhar de forma vertical e ar puro para se pensar, decidir e agir em LIBERDADE.
Ponto crítico para isso ocorrer: os cidadãos terem o seu castelo soberano, isto é, o espaço sagrado e seguro, de seu nome casa, onde podem ter uma vida digna sem pressões existenciais escravizantes. Para a habitação, no presente, cumpre substituir o metro quadrado (que se reduz a um preço inflacionado e essencialmente especulativo) pelo metro cívico (como sinónimo de preço justo, partindo do custo histórico, acrescido da justa e proporcional margem de lucro).
Visite-se a contemporaneidade: se até pessoas profissionalmente comprometidas e com méritos indiscutíveis (que recebem remunerações médias) para ter acesso a uma habitação digna têm de recorrer a apoios estatais, tal significa que a maioria significativa da população fica na dependência dos partidos ou governos que atribuem esses apoios.
Essas pessoas (extinta a classe média, ficamos um país de uma infinita base de arraia-miúda) deixam de ter liberdade para pensar, decidir, agir e até, pasme-se, votar. Tais lógicas obliteram a probabilidade de alternância democrática, mais ainda quando se cristaliza no espaço público a ideia que uns partidos e governos são mais propensos a apoiar e dar e outros mais propensos a cortar ou extinguir.
Na verborreia politiqueira é repetido ad nauseam (como o fazem os últimos governos, com uma novilíngua riquíssima no uso criativo de um sem fim de significantes sem significado: Nova Geração de Políticas de Habitação) que a habitação é um direito fundamental, estando expressamente consagrado no artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa. E todos reconhecem que a habitação é a base de uma sociedade coesa e o alicerce a partir do qual os cidadãos constroem uma vida digna. Contudo, não obstante todas as lullabies ou outras músicas para adormecer, urge acordar e perguntar: como foi possível termos chegados ao ponto atual, onde o preço de metro quadrado de uma habitação para arrendar ou comprar atinge lógicas de confisco do suor ou até da expropriação da dignidade mínima de cada um.
Em Guimarães, as causas são muitas: i) nas últimas três décadas, antecipar o futuro, cultivar uma ética de decisão relacional (resistindo-se a ditaduras do ato unilateral), bem como priorizar o estudar e escutar, dentro e fora, em plurais escalas, para projetar e planear foi remetido para as calendas gregas; ii) em vez de portas franqueadas e poderes de espirito aberto, sem cegueiras ideológicas ou antipatia de classe, tivemos propensão para se agigantar pessoais poderes funcionais, revertendo-se o critério republicano, regressando um personalismo-monárquico-presidencial, em que a SOBERNIA DA INICIATIVA PRIVADA era deliberadamente obliterada: impunha-se aos cidadãos livres que só seriam premiados com a aplicação da lei geral e abstrata se, e só se, aceitassem prescindir do perfil vertical ascendente e ajoelhassem perante o poder laico descendente; iii) este posicionamento politico das diferentes lideranças monárquicas no pós 25 de abril foi fatal para Guimarães: a partícula divina afonsina sempre foi obstáculo a que qualquer vimaranense equacione ajoelhar perante quem quer que seja: com exceção de Deus, claro, nosso orgulhoso monopólio, neste campo; iv) quem tinha terrenos para construção e meios para a consequente promoção imobiliária foi proibido, repito: proibido, por ação ou omissão, pelo poder político reinante, de aumentar a oferta habitacional no concelho.
O Loteamento de Cães de Pedra é um caso paradigmático: há mais de 25 anos que aguarda luz verde para avançar para a construção. Sim, já pelos anos 90 do século passado, se apresentaram projetos concretos ao Município para uma transformação modernista e humanista de uma parte da cidade industrial: priorizando a centralidade habitacional em zona nobre da cidade.
Ontem como hoje, o poder autárquico foi obstáculo, liderou na criação dos problemas e demoliu todas as soluções virtuosas.
Aos dias de hoje, em boa e justa verdade, as métricas comparativas explodiram: i) como foi possível, sem cumprir e garantir previamente a sua parte do convencionado, celebrar, no 24 de junho pretérito, a abertura das ruas no citado loteamento, no qual o Município investiu zero cêntimos; ii) como foi possível, sem cumprir e garantir previamente a sua parte do convencionado, anunciar com pompa, mas sem circunstância, a celebração do protocolo entre a Câmara Municipal de Guimarães, a Universidade do Minho e o CEiiA (Centro de Engenharia e Desenvolvimento) para a constituição do Guimarães Space Hub - centro a ser contruído nas instalações da antiga Fábrica do Arquinho, onde será acolhida a Escola de Engenharia Aeroespacial, quando tudo será instalado num prédio e terreno propriedade do promotor imobiliário; iii) como foi possível, sem ter garantias de certeza e segurança jurídicas, e sem se fazer a devida diligencia que a compliance prudencial impõe, logo sem resguardo consistente de se ter por certo a legitimidade e competência da Câmara Municipal para cumprir a sua parte do convencionado, “ordenar” que o promotor fizesse e suportasse o custo das obras de urbanização do loteamento e a feitura dos arruamentos, sabendo, inclusive, que o seu custo estaria na ordem próxima dos 20 milhões de euros (o que, automaticamente, colocou o Município em riscos legais e contratuais de uma ordem de grandeza séria); iv) ignorar o risco legal de ser exigível o estudo de impacto ambiental é de uma gravidade insuscetível de adjetivação: o que é agravado pelo colossal prejuízo causado ao promotor e à cidade, carente de oferta habitacional. Foi um crime de lesa-concelho de proporções bíblicos, ponto! Cada dia que passa sem o loteamento ter luz verde para avançar adensa a atroz gravidade do acorrido, deixando o prestígio público do Município em níveis preocupantes, isto, em sede da mínima credibilidade e do risco de ser olhada como não sendo uma pessoa de bem por relação ao sagrado princípio: pacta sunt servanda.
Uma última nota: é goodwill e não badwill transformar solos com igual grandeza de impermeabilização, quando se passa de indústria para habitação, na centralidade da cidade. Impermeabilização significa perda da capacidade de absorção da água pelo solo. Este processo acontece principalmente nas cidades, em razão do asfaltamento, calçamento de ruas e calçadas, da própria construção de edificações e da cimentação dos quintais e jardins das casas. Forma-se, assim, uma espécie de capa sobre o solo, impedindo que a água seja absorvida. Ora, o solo impermeabilizado in casu (antes coberto pelas instalações fabris) será similar ao que já existia.