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“Cheiro a Liberdade Estragada“

André Teixeira
Opinião \ domingo, maio 16, 2021
© Direitos reservados
Será liberdade a negação do Estado de Direito Democrático, ou será este mesmo Estado que nos permite a liberdade de viver em paz e fazer as nossas escolhas, independentemente de classe ou origem?

Um pouco por toda a Europa, os partidos tradicionais de esquerda estão em dificuldades. Podemos observar tal coisa no Reino Unido, onde os Trabalhistas de Keir Starmer parecem incapazes de resistir à retórica barata e de sucesso de vacinação dos Conservadores de Boris Johnson, perdendo eleição atrás de eleição. Já na nossa vizinha Espanha, a candidata do Partido Popular Isabel Díaz Ayuso venceu o combate pela comunidade autónoma de Madrid, duplicando os seus deputados, que somam agora mais do que a totalidade das esquerdas. Resultando na devastação do Cidadãos e do Podemos, esta vitória eleitoral tem entusiasmado a Direita portuguesa que na ausência de boas notícias caseiras parece querer acreditar que também cá será possível replicar o fenómeno. Mas será que deveriam desejar tal coisa na frente nacional, apesar das dificuldades de afirmação que experimentam atualmente?

Para melhor compreender os resultados espanhóis é necessário olhar para lá das linhas tradicionais e perceber em que se basearam. Em primeiro lugar, e num ano de pandemia, a incumbente resistiu às medidas de controlo impostas pelo governo central, recusando fechar o comércio ou limitar a circulação. Num momento em que os cidadãos estão cansados de uma vida de reclusão e caras tapadas, o negacionismo e a resistência às regras de combate à pandemia jogaram a favor de Ayuso, ainda que piorando a situação de saúde da Capital. Em segundo lugar, a candidata construiu uma narrativa clássica de oposição aos valores feministas e progressistas, de culpabilização de imigrantes e da demonização da esquerda e do governo central, colocando a escolha eleitoral como uma entre “liberdade ou comunismo”.

A sua aceitação da extrema-direita espanhola como parceira legítima e a sua utilização de retórica trumpista demonstram que a prioridade de Ayuso não foi a melhoria das condições de vida dos madrilenos, mas uma polarização do eleitorado que a conduzisse à vitória. Por último, a sua utilização da palavra “liberdade” como bandeira eleitoral simples e direta revelou genialidade política e um absoluto desprezo pelo termo. Em púlpitos ou cartazes, a palavra pode ser localizada em todas as suas aparições públicas. Identificando-se como “o caminho para a liberdade” foi-lhe possível esvaziar o voto do centro, pertencente ao Cidadãos.

Mas que liberdade é esta que foi prometida aos madrilenos e por eles tão prontamente abraçada? A liberdade de renegar as instituições democraticamente eleitas, a liberdade de assumir ignorância e egoísmo, a liberdade de ser pobre, de ignorar os deveres do próprio e os direitos do próximo? Será liberdade a negação do Estado de Direito Democrático, ou será este mesmo Estado que nos permite a liberdade de vivermos em paz e fazermos as nossas escolhas, independentemente de classe ou origem?

Apesar dos seus óbvios méritos eleitoralistas, não me parece que a Direita democrática portuguesa deva desejar esta forma de liberdade, que a longo prazo tem apenas um de dois resultados: o reforço do poder dos partidos de extrema-direita, cujas palavras e ações são normalizadas e legitimadas quando também adotadas pelos partidos democráticos, ou a viragem destes últimos para a extrema-direita, não parecendo serem capazes de olhar para as trevas sem que estas olhem de volta. Será preferível o charme assertivo de Ayuso à apatia inconsistente de Rio? Para mim não, mas talvez não seja essa a resposta do PSD. De qualquer modo, Portugal tem de abrir a janela… vem um cheiro a liberdade estragada do outro lado da fronteira, e precisamos urgentemente de arejar.

 

Nota: Artigo de opinião originalmente publicado na edição #02 do Jornal de Guimarães em Revista, a 14 de maio de 2021

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