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Da mesa até ao coração

Ruthia Portelinha
Opinião \ segunda-feira, outubro 17, 2022
© Direitos reservados
Cozinhar não é serviço, é um modo de amar os outros – afirma a venerável personagem de um conto de Mia Couto. Uma ideia tão sedutora, que a procuro entre os sabores que experimento, por esse mundo fora.

Podia jurar que o calulu angolano da D. Isabel tinha um travo a boas vindas luandenses, recordo conforto semelhante no pão de queijo de Minas Gerais e no alloco das ruas de Abidjan. É como se o(a) cozinheiro(a) nos acolhesse nos desígnios do seu fogão, entre tachos e temperos.

E não é preciso viajar para os antípodas para sentir essa hospitalidade nas papilas gustativas; deguste-se um apimentado melão de Almeirim, a doçura das maçãs de montanha de Armamar, os chocos com tinta de Matosinhos, os borrachões de Idanha-a-Nova e tantos outros pratos despretensiosos como as migas alentejanas…

Há pouco tempo fui convidada para explorar o recém-certificado Caminho Português de Santiago Interior, que atravessa oito interessantes municípios. Num deles, Santa Marta de Penaguião, comi batatas com bacalhau e vinho a umas improváveis nove e meia da manhã. Tudo embrulhado na belíssima paisagem do Espaço Douro Vivo. Também neste lanche, tão característico das vindimas locais, senti o aconchego do bem-receber.

Como aconteceu em tantas outras aventuras - a Turquia sabe a chá de romã, a China a leite de soja, Viena tem um travo a apfelstrudel -, associo hoje ao Caminho do Interior algumas sensações gustativas. O Caminho Português de Santiago Interior sabe a bolo podre (Castro Daire), vinho do Porto (Peso da Régua), cristas de galo (Vila Real), espumante (Lamego) e água das Pedras com um travo ferroso, mas também a uvas de casca grossa, oferecidas pela D. Nazaré à saída da aldeia de Mões.

“De nenhum fruto queiras só metade”, escreveu Miguel Torga, ensinamento que tento aplicar, metafórica e literalmente. Comi, portanto, muitas uvas, tal como tragaria, sem pensar no amanhã, castanhas e outros resultados da estação doirada. Talvez a exceção seja o dióspiro, fruto que nunca caiu nas minhas graças, por causa da textura. Não percebo o prazer com que se colhe e se alinha no muro, antes que se transforme em substância melosa no chão, vigiando com paciência o momento certo para o comer.

Perco-me em deambulações, quando tudo o que quero exprimir é que comida é cultura, para além de hospitalidade. Há os pratos de todos os dias, o alimento das festas, a comida de cada estação, sem esquecer das idiossincrasias de cada região: Portugal é bem rico nesse quesito, e nem é preciso abrir a caixa de Pandora chamada doçaria conventual.

Manter essas tradições culinárias é tão importante como inovar com os produtos locais. Não gosto de ir a Trás-os-Montes e ver francesinhas nos menus. Dêem-me antes pratos, tradicionais ou reinventados, com cogumelos, castanhas, uvas, vinho. Prometo até que dou uma segunda oportunidade ao dióspiro, se em vez de serviço, me for apresentado sob a forma de afetos.

Ruthia Portelinha, viajante e autora do blog O Berço do Mundo

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